Rui: Foi preciso rebentar uma guerra na Ucrânia para nos pôr a falar de cereais. Neste caso, as falhas no abastecimento foram provocadas por um conflito armado.
Maria: Mas há outra crise a gerar ondas de choque no sistema que produz aquilo que comemos. Talvez até já tenhas ouvido falar nela: a crise climática.
Rui: Olhemos para a Índia, o segundo maior produtor de trigo do mundo. Em Abril de 2022, com os alertas de escassez de cereais, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi anunciou: “Estamos prontos para alimentar o mundo”. A Índia preparava-se para conquistar o lugar de liderança como super exportador de cereais. Mas os planos depressa caíram por terra. Uma onda de calor severa destruiu uma parte significativa da produção de trigo. O governo indiano foi obrigado a recuar. Foi o Abril mais quente na Índia nos últimos 122 anos. Durante séculos, a história do trigo foi marcada por ambições geopolíticas.
Maria: Agora, as alterações climáticas também têm uma palavra a dizer. Ignorar isso é comprometer a necessidade de alimentar o mundo: no presente e no futuro.
Pedro Horta: É um bocado o argumento de que é sonhador tentares produzir bem, que para produzir tens que estragar alguma coisa. E isto não faz sentido.
Marta Cortegano: Nós agora precisamos mesmo é que alguém venha cá repor alguma coisa. Já chega de retirar a este território, é altura de repor.
Rui: Eu sou o Rui Catalão.
Maria: E eu sou a Maria Antunes
Rui: Este é o terceiro episódio do podcast Próprio para Consumo. Uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática.
Se olhares para a comida que tens no prato podes ver muita coisa. Mas talvez não vejas isto: andamos a comer à custa do planeta. O sistema alimentar está em crise e é mais do que uma vítima das alterações climáticas; também contribui para as tornar mais perigosas.
Maria: Neste terceiro episódio vamos ao Alentejo, o antigo celeiro de Portugal, para perceber que tipo de agricultura será possível num futuro com mais calor e menos água.
Rui: Há pouco falámos-te de como a Índia tem atingido recordes consecutivos de altas temperaturas. Na verdade, desde essa altura que os alarmes não param de soar um pouco por todo mundo. E também em Portugal. Em Mértola, no interior despovoado do Baixo Alentejo, aconteceu o mesmo.
Marta Cortegano: Estes 40 aqui já estamos habituados nesta altura, mas ter 37 graus ou 38 graus em Abril, como tivemos, é um desafio. E fomos ver e tinha sido o Abril mais quente desde que há registos meteorológicos.
RUI
Acabámos de chegar. São 9 e meia da manhã. E à nossa espera está Marta Cortegano, engenheira florestal que vive em Mértola desde 2004. Viemos preparados para um dia de calor extremo.
Maria: Aliás, quando falámos ao telefone, a Marta avisou-nos: cheguem muito cedo ou o calor vai tornar a vossa visita insuportável.
Rui: Uns dias antes, consultámos as previsões do Instituto Português do Mar e da Atmosfera: 42 graus de máxima. E levámos o conselho a sério. Pode parecer exagerado, mas até trouxemos daquelas placas de gelo, dentro de uma lancheira, para o caso de o gravador sobreaquecer e deixar de funcionar.
Maria: E, claro, trouxemos protector solar, roupa fresca, chapéu e água.
Rui: Estamos a meio de uma onda de calor, no fim de Junho, e este nem é o pior dia.
Marta Cortegano: Olha, vocês tiveram uma sorte, não imaginam. Nós temos vivido no inferno nestes dias. Tem estado, de manhã já estão 40 graus. Esta é a primeira manhã que temos de fresco. Nós hoje sentimo-nos outros já.
Rui: Falta dizer que hoje, afinal, vão estar “apenas” 40 graus, porque o sol está tapado por uma nuvem de fumo provocada pelos enormes incêndios florestais no Canadá.
Maria: Se calhar viste notícias sobre o assunto. Ou até reparaste no céu diferente.
Rui: Escusado será dizer que está tudo ligado. Eis um exemplo de eventos extremos causados pelas alterações climáticas. E de como as consequências não têm fronteiras. Decidimos vir até Mértola por várias razões. Comecemos pela primeira.
Maria: No episódio anterior falámos-te da campanha do trigo. É lançada em 1929, durante a Ditadura Militar, e prolonga-se até ao Estado Novo, com o objectivo de tornar Portugal autosuficiente em trigo. É nas planícies do Alentejo que a campanha é feita com maior intensidade.
Rui: Aqui em Mértola, quando olhamos à volta, não vemos searas de trigo. Mas na paisagem, à margem do Guadiana, ficou uma marca desses tempos. São os antigos celeiros e silos da EPAC, a Empresa Pública de Abastecimento de Cereais, que foram abandonados nos anos 80. Décadas mais tarde, além destes imponentes silos, o que é que sobrou desse período?
Marte Cortegano: Não vais gostar da resposta.
Rui: Se calhar vou.
Marta Cortegano: Então, há uma classificação, que classifica os solos em ABCDE e tem exatamente a ver com a sua vocação para produzir cereais. O ‘A’ – que são os solos no máximo do expoente, de excelência de produção –; depois temos o ‘B’ – muito bons –, o ‘C’ – que já não dão muito bem para produção agrícola e tal –, ‘D’ – de floresta – e ‘E’, que é só floresta de conservação – que nem se quer para produzir floresta de produção, era assim que é considerado, são bons. Portanto, nós aqui temos 80 e tal quase 90 por cento de solos ‘E’ e o resto ‘D’ e produziu-se trigo em todo o lado. E como os solos não são bons, precisamos de quê? De mais área e, portanto, de cortar árvores. E precisamos de fazer o cereal até encostado ao tronco da árvore, não é? Na verdade, foi a maior desgraça que nós tivemos.
Rui: A teoria diz que não fazia sentido produzir trigo nestes solos.
Marta Cortegano: Mas era uma desgraça que ainda hoje causa saudosismo, porque é também o tempo em que as pessoas se juntavam e tinham trabalho e que iam para o campo e cantavam. Viviam na miséria, mas juntavam-se, vinham pessoas, vinham pessoas do Norte, vinham pessoas na altura da ceifa. Isto historicamente há assim uma emoção ligada a esta realidade histórica. As músicas do Canto Popular Alentejano cantam muito isso, não é? E há muitas canções no reportório que dizem que já não há cereal, as terras estão abandonadas, porque simbolizava algo de muito importante para estas populações o verem terras em que se cultivava. Apesar de que, na verdade, as produções são uma miséria aqui. Tinha de se cultivar, cultivava, mas as produções são uma miséria.
Rui: Fica claro que insistir no trigo foi um erro. À luz da realidade de hoje temos outro conhecimento e podemos tomar decisões mais conscientes. Mas até mesmo lá atrás, bem no passado, já havia alertas de que o sistema alimentar não estava a seguir o melhor caminho.
Marta Cortegano: Nós encontrámos um testemunho de século XVIII de um magistrado que, a mando da Rainha Dona Maria II, penso eu, foi enviado para fazer uma análise do que é que estava a acontecer no Alentejo e porque é que havia tão pouca produtividade. Estamos a falar de 1700 e qualquer coisa. E ele faz um relato absolutamente devastador quando chega a Mértola. Ele escreve à Rainha a dizer que estas pessoas não entendem a importância das árvores, e preocupadas que estão só com os seus gados, continuam a cortar todo o arvoredo sem entender que, sem sombra para as árvores, não terão comida nem água no futuro para os seus animais. Mil setecentos e qualquer coisa.
Rui: O tal magistrado de quem Marta fala é Gervásio de Almeida Pais, que em 1789 descreveu este cenário à rainha D. Maria I. A degradação do território, de facto, só aumentou. Olhando para trás, todos os povos estiveram aqui com um só objectivo: extrair o que Mértola tinha para dar.
Marta Cortegano: Por aqui por Mértola, passaram todos, dos fenícios aos visigodos, aos romanos, aos árabes… por aqui passou toda a gente e, portanto, foi sempre um sítio onde toda a gente veio para retirar. Nunca ninguém vem para repor, para repor o que quer que fosse. Desde o minério ao trigo, ao quer que fosse, foi sempre visto como um sítio em que vamos lá explorar.
Rui: Isto não é muito diferente daquilo que vemos no nosso sistema alimentar global ao longo das últimas décadas.
Maria: Extraímos, retiramos, esgotamos, sem medir as consequências a médio e longo prazo para os solos, para a biodiversidade, para os recursos hídricos.
Rui: Tudo em nome do desenvolvimento e do crescimento económico. E que na maior parte das vezes não vemos quando olhamos para o nosso prato ou para o nosso frigorifico. Falar de sistemas alimentares é falar de muita coisa:
Maria: produção de alimentos, armazenamento, transporte,
Rui: transformação e distribuição, comércio e marketing,
Maria: legislação, consumo e desperdício, e claro, impacto de tudo isto na economia, na sociedade e no ambiente. Temo-nos esquecido especialmente deste último? O ambiente?
Rui: Hoje a ciência está a dar-nos uma mensagem clara: sem uma mudança drástica na forma como produzimos alimentos e cuidamos do solo, vai ser impossível travar o avanço das alterações climáticas. Em Mértola, esse processo está em curso.
Marta Cortegano: E é tempo de repor nestas terras. Nós agora precisamos mesmo é que alguém venha cá repor alguma coisa. Já chega de retirar a este território, é altura de repor.
Rui: E é esta a segunda razão que nos traz a Mértola.
Maria: Por aqui há muito mais do que braços cruzados de gente conformada com o despovoamento e a desertificação. Com os avisos repetidos, como o do Observatório Europeu da Seca, em Maio deste ano: sem as alterações climáticas, o calor extremo que estamos a sentir em países como Portugal ou Espanha seria quase impossível. Aqui em Mértola, onde o deserto já está a chegar, há um grupo de pessoas com uma missão comum.
Marta Cortegano: É aprender. É saber fazer. Saber fazer na aridez, e na dificuldade, saber produzir comida nestas circunstâncias. E é também ficar e fazer vida disso, não é?
Rui: Estas pessoas criaram uma espécie de laboratório para o futuro. Marta Cortegano é uma delas. Em conjunto fundaram em 2018 a Associação Terra Sintrópica.
Maria: A semente foi a ideia de criar uma rede alimentar local, mas o projecto cresceu. Já há hortas a abastecer algumas cantinas e lares de idosos.
Rui: Mas a ambição é ainda maior.
Marta Cortegano: Seria o sonho que de facto nós entrássemos em qualquer supermercado e encontrássemos produtos locais.
Rui: A Câmara Municipal de Mértola e outras entidades cederam terrenos e os primeiros ensaios agrícolas começaram. Na base estão os princípios da agricultura sintrópica.
Pedro Nogueira: Tem muito a ver com esta ideia de nós termos no mesmo espaço floresta e agricultura.
Rui: Estamos nesse espaço, na Horta da Malhadinha, o coração do Centro de Agroecologia de Mértola.
Maria: Além de Marta, acompanha-nos Pedro Nogueira, arquitecto paisagista de formação e coordenador deste centro.
Pedro Nogueira: Há uma noção que não digo que é de colapso, mas é de risco, de desafio enorme.
Rui: Aqui ensaia-se um sistema agrícola alternativo.
Pedro Nogueira: Este é densamente plantado, mas é muito biodiverso, com dezenas ou centenas de espécies, com muita protecção de solo. Exactamente grande parte do sistema… ele serve para sucessivamente ser podado e alimentar o próprio solo. Portanto, não é um sistema que esteja com nenhum gota a gota em assistência… como é que se diz? Em life support. A soro, a soro. Ou seja, não é um sistema a soro. É um sistema onde há uma produção de biomassa brutal e essa biomassa está sucessivamente a ser incorporada no solo. Portanto, isso é uma mudança gigante.
Rui: O que aqui vemos não é uma horta convencional com uma linha de alface, outra de tomate e uma de abóbora, por exemplo.
Marta Cortegano: Estamos a ver medronho, figueira, pessegueiros, aqui nestas linhas. Fora aroeiras, alfazemas, etc., isto na linha das árvores. Com esta distância que parece assustador, não é? Para quem não… quem faz qualquer outro tipo de agricultura, o que é isto?
Rui: Estamos a falar de, para aí, em alguns casos, menos de meio metro entre…
Marta Cortegano: Muito menos, sim, muito menos. E depois, nas entrelinhas, fazemos a produção alimentar, em que temos algumas plantas perenes, como os alecrins, mas temos tomate, batata doce… girassol.
Rui: Quase não vemos solo. Está coberto de palha, resíduos de choupo, e outros tipos de matéria orgânica.
Marta Cortegano: Esta proteção com que agora o solo fica é absolutamente essencial.
Rui: Para preservar a vida no solo e reter humidade. Vemos agricultura e floresta lado a lado, a ajudarem-se mutuamente.
Pedro Nogueira: Quando circulam nesta ilha, que é uma ilha que nós assumimos – e que começa a ser realidade –, que é uma ilha verde no meio de uma paisagem bastante desertificada, e vocês vêem que as árvores, elas não têm doenças aparentes e o vigor, a vitalidade do sistema… é muito interessante.
Rui: Uma ilha verde no meio do deserto.
Marta Cortegano: E atenção que vocês estão a olhar para isto depois dos três dias mais quentes do ano e aqui três dias mais quentes… pronto, já falámos sobre isso. Estamos a falar de… estivemos, com 45 graus, inclusive à noite. As plantas não têm aqui nenhum, coitadas… quem são as plantas que se adaptam a isto?
Rui: Uma coisa é certa: tal como as pessoas, as plantas vão ter de se adaptar a um clima cada vez mais marcado por extremos.
Maria: O que em Mértola – e na verdade em todo o país – quer dizer mais calor e menos água.
Rui: E o impacto vai para lá da agricultura e da pecuária, que consomem 75% de toda a água em Portugal.
Marta Cortegano: É muito forte porque muitas vezes no Verão há populações a serem servidas de água pelos bombeiros. Coisa que quem vive em Lisboa não tem noção do que é não ter água nas torneiras.
Rui: Que agricultura será possível num cenário desses? Na Horta da Malhadinha testa-se uma ideia que tem tanto de poética como de revolucionária: plantar água.
Marta Cortegano: E estamos a falar de uma rega de uma vez por semana. Mas a diferença é tão simplesmente esta, de duas vezes por dia para uma vez por semana.
Maria: Ouviste bem? Regam uma vez por semana. Já nos tinham falado disto e na altura achámos impossível. Mas agora que estamos no meio da Horta da Malhadinha, vemos que pouca água pode ser o suficiente.
Marta Cortegano: É deveras impressionante quando se chega aqui num pico de calor e os solos foram regados, as plantas foram regadas há cinco dias e nós pomos a mão no solo e está húmido.
Rui: Isto só é possível com a cobertura do solo e a diversidade de plantas que colaboram e ajudam a reter água.
Maria: Estamos a falar do Baixo Alentejo.
Rui: Esta é a região do país onde 94% do território está susceptível à desertificação. Em Mértola, o número sobe para 96%.
Marta Cortegano: Há que abrir os olhos e ver que alguma coisa tem que ser feita.
Rui: Para isso cada agricultor conta e representa uma peça no puzzle.
Maria: Mas a forma como ele é montado depende das políticas públicas.
Rui: O puzzle é complexo, por isso pedimos ajuda para descodificar as regras deste jogo.
Pedro Horta: Olá, sou o Pedro Horta. Sou colaborador da ZERO. Vejo-me como activista, cidadão e também praticante de agricultura.
Rui: Pedro segue atentamente as políticas públicas nas áreas da agricultura, floresta e biodiversidade na associação ambientalista ZERO.
Pedro Horta: Todos os anos temos apoios públicos que vão para a agricultura com uma determinada configuração. Se calhar é saudável pensar ‘ok, se existe uma agricultura mais de mercado, deixem que essa agricultura funcione no mercado sem tanta subsidiação e vamos tentar investir em e em soluções que realmente tragam bens públicos’. Já que é dinheiro público, que tragam mais bens públicos.
Rui: Como se fosse essencial semear uma ideia simples na mente de quem governa e legisla.
Pedro Horta: As nossas condições edafoclimáticas é que devem ditar aquilo que é produzido. E eu diria mais, devia ditar aquilo que é a nossa alimentação um pouco mais do que às vezes é.
Rui: Parece que no desenho das políticas públicas não há espaço para aquilo que se faz aqui, nos mais de dois hectares da Horta da Malhadinha.
António Coelho: É muito difícil aceder aos apoios.
Rui: Faltava trazer ao microfone o agricultor. É António Coelho, marido de Marta, quem põe em prática aquilo que temos aqui à nossa volta.
António Coelho: Acede-se no sentido que tem de se declarar uma cultura. Eu tenho que dizer que faço hortícolas, por exemplo. Mas não faço só hortícolas, como vocês podem ver.
Marta Cortegano: Portanto, o António quer aceder aos subsídios. Tem que ser inscrever, declarar o que é que ele aqui tem e não existe nenhuma modalidade onde ele possa declarar. Então mas isto é fruteiras? Mas então é floresta? Ah mas se é árvores já não é agricultura, não pode receber. Então se tem floresta, não é? Ou é hortícolas? Ele tem esta dificuldade todos os anos. E ainda não houve ninguém que lhe soubesse dizer como é que ele se pode inscrever, não é? Então aqui têm todas as medidas verdes: tem cobertura de solo, tem uma proteção da biodiversidade, tem diversidade agrícola, diversidade de variedades. Portanto, tudo aquilo que está no discurso ele faz, só que faz em conjunto, não é válido. [risos] Se eu fizer uma monocultura com químicos e puser ali uma cobertura de solo, eu sou elegível e recebo o subsídio. Se eu juntar todas as boas práticas que existem e juntar numa coisa só, eu não sou elegível.
Rui: Temos monocultura até no pensamento.
Marta Cortegano: Exactamente, sim.
Rui: Eles não encaixam no sistema. Mudamos o sistema?
Pedro Horta: Acho que há falta de vontade, de facto, e há sempre que um jogo de poderes entre os actores que estão estabelecidos e podem ver isso como uma ameaça à sua estrutura. Acho que tem de haver mais diversidade. Não quer dizer que vá acabar a agricultura industrial. Nalguns contextos faz muito sentido.
Rui: Não tem de acabar, mas também não pode continuar assim.
Pedro Horta: A nossa agricultura industrial tem sido muito no sentido da comodificação, de transformar os alimentos em mercadorias e ver que oportunidades de mercado há. E nós vemos agora com a questão dos cereais, não é? Aquela retórica: temos de nos concentrar na produção, não podemos fazer a reforma política europeia no sentido da biodiversidade, do clima, porque temos que salvaguardar a produção.
Rui: Basta olhar para as negociações à volta da Lei do Restauro da Natureza no Parlamento Europeu.
Pedro Horta: Muitas destas iniciativas estão a ser um batalhadas com unhas e dentes.
Rui: A Lei do Restauro foi aprovada à justa.
Maria: Mas para passar, caíram as medidas que detalhavam o papel das áreas agrícolas na recuperação dos ecossistemas naturais.
Rui: A batalha política entre os partidos de esquerda e de direita no Parlamento Europeu simboliza o braço de ferro entre ambiente e agricultura. Entre regenerar a natureza e produzir alimentos. Como se a coexistência fosse impossível.
Pedro Horta: É um bocado o argumento que é sonhador tentares produzir bem. Para produzires tens que estragar alguma coisa e isto não faz sentido.
Rui: Desflorestação, perda de biodiversidade, erosão e contaminação do solo, destruição de ecossistemas, resistência de pragas a pesticidas, poluição da água.
Maria: Se houvesse uma factura detalhada com a lista dos custos associados à agricultura moderna, seriam estes os principais. Como se assistíssemos a um acto de sabotagem: a produção alimentar global a comprometer a própria produção alimentar global. E este número impressiona: 52% de toda a área agrícola mundial está degradada.
Rui: Se tivesses de apostar em quanto tempo é necessário para recuperar apenas 1 cm desses solos, o que dirias? 1 ano? 5? 10? A resposta é pelo menos 100 anos. Estamos a correr atrás do prejuízo E há muita gente que é preciso convencer a mudar.
Marta Cortegano: “Isso é impossível… isso alguma vez… isso não dá, não é? Isso, não dá. Que disparate, alguma vez aquilo vai dar? Sim, não lhe ponham água, a ver…”
Rui: Marta já ouviu esta reacção de muitos agricultores. São os mesmos que, aflitos com a seca extrema, pedem apoios e medidas extraordinárias para salvar as suas explorações.
Marta Cortegano: Com quem eu sou solidária, não é, mas que não estando a fazer esse caminho de regeneração, estão absolutamente desesperados, não é? Portanto, é totalmente diferente o agricultor que hoje, depois destes dias seguidos de 40 e tal graus, que vêm para cá e que não têm água para o gado e que não têm… e que tem que comprar comida e dar de comer à mão ao seu gado porque não tem absolutamente nada na paisagem. Têm um desânimo total, são zangados, revoltados com o sistema, com o ecossistema que temos. Mas se eles ouvissem, tivessem percebido o que aqui se diz e mudassem as suas práticas em dez por cento o acréscimo de sustentabilidade do território já seria enorme.
Rui: Ouvir, perceber e mudar. Pode ser mais fácil quando somos novos.
Aluna: Professora, está crescendo ali a lavanda.
Professora: Esta aqui de flor amarela?
Aluna: Sim.
Professora: Esta é santolina.
Rui: No recreio desta escola primária do concelho de Mértola aprende-se o nome de espécies de plantas.
Professora: Nós a semana passada pusemos o filhinho, não foi? Sim, mas depois veio muito calor e ele não sobreviveu. Não foi?
Aluno: E morreu.
Rui: Também se ensinam os efeitos do calor. E sentem-se na pele.
Professora: Há dias em que custa. Principalmente, por exemplo, ontem foi um dia custoso. Não estava assim nublado, estava… o sol estava, estava o céu limpo e o sol brilhante. E são 48 graus às vezes, ou 45. A esta hora, ainda mais com as crianças, nesta época fica fica um bocadinho duro. E em Abril também tivemos um período muito, muito exigente e nessa altura não estamos com as crianças cá fora. Temos de estar lá dentro.
Maria: Esta sala de aula ao ar livre faz parte do projecto da Terra Sintrópica. Plantar hortas floresta nas escolas.
Aluna: A gente enterra as plantinhas para ficarem confortáveis.
Rui: Tal como na Horta da Malhadinha, também aqui se cobre o solo para proteger toda a humidade.
Aluna: E os paus tipo fazem uma caminha.
Rui: Para que também estes alunos façam parte da mudança.
Professora: É que as crianças não esquecem, por muito distraídas que possam parecer.
Rui: E não terão mesmo como esquecer. Porque é a realidade que têm.
Maria: Mesmo que não saibam que Mértola já não tem um clima mediterrânico. É um clima semi-árido. Tal como outras zonas no distrito de Beja e parte do Algarve.
Rui: E que num horizonte de 50 a 80 anos poderá chegar a distritos como Lisboa, Santarém, Castelo Branco e Guarda.
Maria: Nessa altura, Mértola já quer ter conhecimento para ajudar. Pode exportar a experiência que se vai acumulando aqui.
Aluno: Se o morangueiro dá morangos eu vou comer o morango.
Aluna: Mas tens de lavar primeiro!
Rui: Lembras-te daqueles silos abandonados na margem do Guadiana de que falávamos no início do episódio? Em breve vai nascer ali a Estação Biológica de Mértola, um centro de investigação para a biodiversidade, agroecologia e recursos silvestres.
Maria: É preciso conhecimento para combater a desertificação e pessoas para contrariar o despovoamento. O concelho de Mértola tem apenas 4,8 habitantes por quilómetro quadrado. Beja, a capital de distrito, tem 29.
Rui: Só para teres uma ideia, no primeiro lugar está a Amadora, com 7310.
Marta Cortegano: Sim, é difícil viver aqui e que se calhar não podemos pensar que todos querem passar por isto, porque a maior parte das pessoas não quer. Foge disto e é legítimo. Os meus pais fugiram, a minha família fugiu, não é, portanto, a minha família saiu toda do Baixo Alentejo. Não foi de Mértola, mas foi de outro sítio muito próximo. E saiu toda a família.
Rui: Marta e António fizeram o caminho contrário.
Marta Cortegano: Viemos há 19 anos. Quando chegamos cá o carro marcava 47 graus, era Agosto e nós pensámos o que é que vamos fazer? [risos]
Rui: Muitos chegam e partem, mas eles ficaram.
António Coelho: É uma coisa que me motiva imenso e podia fazer outras coisas na vida. Mas prefiro efetivamente estar aqui a trabalhar naquilo que eu acho que é o meu propósito.
Rui: E começaram a criar raízes, a crescer num sítio onde não era suposto.
Marta Cortegano: E a minha avó dizia me muitas vezes: “Não é o que tu pensas, tu não queiras ir”.
Rui: Contra todas as probabilidades.
Marta Cortegano: Imaginem quando estão trabalhar com crianças, não é? E explicamos que não há ervas daninhas. Há uma planta que tem ali uma função e que na verdade até é bastante mais forte. É ali a planta guerreira que consegue sobreviver e lutar quando mais ninguém consegue e que ela está a colaborar com as outras. Portanto, ela não é nenhuma invasiva nem nenhuma erva daninha. É uma erva cheia de força que está ali a colaborar. Não estamos só a ensinar agricultura.
Rui: Neste Alentejo, onde já se semeou e colheu muito trigo, trabalha-se no laboratório do futuro. E, olhando para o trigo, que pão vamos ter nesse futuro? Um pouco por todo o mundo há cientistas à procura de soluções. Desde o regresso a variedades mais antigas e adaptadas ao clima e ao solo. À criação de novos trigos, resistentes ao calor extremo, através de cruzamentos ou manipulação genética. E até à descoberta de uma espécie de trigo que não precisa de ser semeada todos os anos.
Maria: Para já, o que sabemos é que a crise climática está a destruir colheitas e a comprometer a produtividade do trigo. Tal como sabemos que essa mesma crise está a por em causa o sistema que hoje produz aquilo que comemos, seja pelas emissões de gases com efeito de estufa, o uso excessivo de fertilizantes, ou a degradação dos solos e a perda de biodiversidade.
Rui: O nosso pão tem tudo a ver com as alterações climáticas. E tem ainda mais a ver se pensares naquilo que pões dentro do pão. Comer uma bifana tem um impacto ambiental muito superior ao de uma sandes de manteiga de amendoim. Ainda que o pão seja exactamente o mesmo.
Maria: Para produzir o que comemos precisamos daquilo que o planeta nos dá. Mas esses recursos têm limites. E neste momento caminhamos para os ultrapassar.
Rui: O sistema alimentar precisa de abrir uma porta num beco sem saída. Precisa de mudar.
“A gente pensa nos alimentos só como aquilo que a gente ingere, mas tem tudo por trás daquilo, né? Todos os recursos que são usados. Então, quando a gente joga uma comida fora, não é só aquilo, está jogando dinheiro fora, está jogando água fora, terra fora. São todos os outros custos que estão envolvidos que a gente não pensa.
“Ao mesmo tempo que há esta modernização, e esta variedade e falta de tempo, e pronto a comer, e aquelas coisas todas rápidas e microondas etc etc… há sempre um movimento de contra resistência. Sempre.”
“E nós temos que ter aquele equilíbrio, temos que ser uma balança. Não posso querer só para mim porque sei que a pessoa… quem ganha um salário mínimo nacional, o dinheiro não chega para tudo. Não chega para comprar uma carne, um peixe, um pão.”
Rui: O bom pão quando nasce é para todos? Essa é a resposta que nos falta.
Créditos
Rui: Este episódio foi produzido, escrito e editado por mim Rui Catalão, pela Maria Antunes e pela Vera Moutinho.
O podcast Próprio para Consumo é uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática. Esta primeira temporada tem 4 episódios e conta com o apoio da ANP|WWF. Este projecto vive para lá dos episódios do podcast. Nos sites e nas redes sociais do Público e dos Kitchen Dates há mais para ler e ver sobre os temas de cada episódio. Até à próxima.