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2. Como é que chegámos até aqui?

Queremos comer o pão da avó, mas já não temos o trigo do avô. Só podemos questionar o pão de hoje se percebermos o que aconteceu ao trigo ao longo dos séculos, por isso prepara-te: vamos contar-te a história que nunca te contaram, com um pé em Portugal e o outro no mundo. Até porque o passado pode dar-nos pistas sobre como o sistema alimentar chegou a um ponto de ruptura.

Transcrição do episódio

Rui: Lembras-te das aulas de história na escola? De te falarem do império romano, da revolução industrial e da primeira ou da segunda guerra mundial? Quantas vezes ouviste falar de trigo?

Maria: Os livros de história têm muitos protagonistas. O trigo sustentou impérios e provocou revoluções e guerras, mas raramente lhe reconhecemos o papel principal.

Rui: Hoje vamos contar-te o que nunca te contaram. Vamos revelar-te o que ficou de fora dos manuais de história.

João Vieira: Fala-se muito de pão e pouco ou nada de trigo. Ora, se o pão é de trigo, tínhamos que começar por perceber que trigo é. Porque nem todo o trigo é trigo, e sobretudo os trigos consumidos agora massivamente não têm nada a ver com os trigos de há 1000 anos, de há 500 anos ou mesmo de há 80 anos.

Rui: A história do trigo dá-nos pistas sobre como o sistema alimentar atingiu um ponto de ruptura. Deixámos de saber quem cultivou, como produziu, de que forma nos chegou.

Maria: Perdemos a ligação à terra, ao solo, àquilo que comemos.

Rui: Tem de haver pão para alimentar o mundo, mas há um problema com o pão que andamos a comer: o trigo do qual nasceu.

Eu sou o Rui Catalão.

Maria: E eu sou a Maria Antunes.

Rui: Este é o segundo episódio do podcast Próprio para Consumo. Uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática.

Se olhares para a comida que tens no prato podes ver muita coisa. Mas talvez não vejas isto: andamos a comer à custa do planeta. O sistema alimentar está em crise e é mais do que uma vítima das alterações climáticas; também contribui para as tornar mais perigosas.

Maria: Neste segundo episódio percorremos a história do trigo, dentro e fora de Portugal.

Rui: Visitamos um guardião de trigos antigos e mergulhamos na investigação de um historiador para responder à pergunta: “Como é que chegámos até aqui?”

Muitos são aqueles que chegam ao Cadaval, no distrito de Lisboa, à procura de João Vieira. Querem beber da sua experiência e conhecimento.

Maria: Também nós fizemos esta viagem várias vezes ao longo dos últimos anos, na nossa busca por uma alimentação mais consciente e sustentável.

Rui: E, para nós, fazer um episódio sobre pão e não vir aqui falar consigo era absolutamente impensável.

João Vieira: Pois, aqui é o ponto de partida. [risos]

Rui: João, 84 anos, é agricultor e guardião de sementes e de memórias, com a missão de preservar trigos antigos e defender um pão de qualidade.

João Vieira : De resto o pão deveria ter um outro tratamento. Se o pão foi invocado em cerimónias litúrgicas quase como um produto sagrado, então ele deveria ter esta consideração até por isso. Porque quando os sacerdotes invocam nas cerimónias litúrgicas “este é o meu corpo”… bem, pode já não ser bem o meu corpo, porque está alterado. [risos]

Rui: João Vieira tem uma energia contagiante e um passo acelerado.

João Vieira: O trigo está acolá.

Maria: Não podemos distrair-nos enquanto o acompanhamos pelas terras onde cultiva trigo. Senão… perdemo-nos.

Rui: Sentimos a urgência na forma como anda e na mensagem.

E há décadas que João Vieira chama a atenção para a necessidade de repensar o sistema alimentar.

João Vieira: O processo que está em marcha atualmente não é sustentável. E eu até digo que ele está esgotado. Muitos ainda não entenderam isso, mas verão com o tempo que não é possível continuar a fazer o que tem sido feito nos últimos 100 anos, desde a tal revolução verde que não foi revolução e muito menos verde.

Rui: Não podemos falar da história dos trigos sem falar na revolução verde. Estamos na década de 50. O mundo acaba de sair da segunda guerra mundial com muitos problemas por resolver. Um deles a fome.

Maria: É essencial produzir mais alimentos. E é essa a grande promessa da revolução verde: melhorar e aumentar a produção agrícola. Liderada pelos Estados Unidos, e impulsionada por dois gigantes:

  • a Fundação Rockefeller, criada pelo magnata do petróleo John D. Rockefeller
  • e a Fundação Ford – sim, a mesma Ford dos automóveis.

Rui: A revolução verde arranca no México, com o trigo, e rapidamente se estende por todo o mundo: Índia, Paquistão, Filipinas, China, Brasil. A intensificação do cultivo de trigo, e mais tarde de arroz e milho, salva mais de mil milhões de pessoas de morrer à fome.

Carlos Faísca: Parece uma história muito bonita. Qual é que o problema de isto tudo?

Rui: A dúvida é levantada por Carlos Manuel Faísca, historiador, investigador e doutorado em economia.

Carlos Faísca: Perguntem tudo porque eu falo muito.

Rui: Carlos tem um interesse especial pelo trigo, incluindo o período da revolução verde. Por isso começamos por aí.

Carlos Faísca: Grande parte da produtividade agrícola que foi ganha no século XX foi através de aumento de adubos, aumento das áreas de regadios e introdução de variedades, de espécies de plantas.

Rui: À saída da segunda guerra mundial há uma indústria química com muito peso na economia, só que já não precisa de produzir bombas e por isso tem nitrato e fosfato a mais, e não sabe onde utilizá-los.

Maria: O que têm em comum as bombas e as plantas? Ambas precisam de nitrato e fosfato. Nasce então a ideia dos fertilizantes sintéticos. Só que nas primeiras experiências, a produtividade do trigo desce em vez de subir.

Rui: Porquê? A planta enfraquece, a palha dobra-se e isso compromete o crescimento da espiga e a formação do grão.

Maria: Mas este fracasso não dita o fim prematuro dos fertilizantes sintéticos.

Rui: Se o problema está na palha, então mudemos antes o trigo em si. Surgem assim os trigos modernos, aqueles que hoje mais comemos. E que têm uma particularidade.

Carlos Faísca: Passamos de searas de trigo com a minha altura. Eu, antes de a lei da gravidade me fazer reduzir um ou dois centímetros, tinha 1,84. E, portanto, de trigos de 1,84 passamos para trigos de um metro, e às vezes até mais baixo.

Rui: São os chamados trigos anões, criados a partir de variedades mais antigas.

Carlos Faísca: Fazendo melhora em estações próprias. E fazendo também cruzamento e híbridos de plantas agrícolas. E esta melhora… eu estou a usar o termo melhora, embora que como você já vão perceber isso depende da perspectiva… teve como objetivo única e exclusivamente aumentar a produção de grão. Esqueceu, por exemplo, a palha, que era importante para as populações rurais porque alimentava o gado, faziam as camas, inclusivamente na serra do Algarve, faziam o telhado.

Rui: Com a industrialização da agricultura, a palha perde valor.

Maria: Até porque a maquinaria vem substituir os animais, precisamente aqueles que se alimentavam da palha. Resolve-se um problema mas surge outro: sem a palha alta a protegê-lo, o trigo fica mais frágil perante outras plantas – a que normalmente chamamos daninhas – que crescem mais facilmente à sua volta, no mesmo espaço.

Rui: A solução? Aplicar herbicidas.

João Vieira: Então, como é que se faz na agricultura moderna e competitiva? Põe se herbicida ou biocida. O herbicida mata estas ervas para que elas deixem de fazer concorrência ao trigo. Mas ao matar as ervas também mata todo o ecossistema que está aqui.

Rui: Mais uma vez, ganhar de um lado implica perder do outro. Ou de muitos outros. Essa também é a dupla face da revolução verde.

A agricultura industrial promete acabar com a fome, mas ao mesmo tempo destrói 70% da biodiversidade terrestre. Um dos principais culpados por esta perda é o glifosato, o famoso herbicida patenteado por uma empresa agroquímica norte-americana: a Monsanto.

João Vieira: São grandes empresas cuja única preocupação são os cifrões. E, então, numa última etapa do cultivo do trigo, eles são pulverizados de avião com glifosato.

Rui: Importa perceber para que serve aplicar um herbicida como o glifosato pouco antes da colheita. É simples: seca artificialmente o trigo. E assim há uma garantia de que o cereal está pronto a ser colhido, transportado e armazenado, faça chuva ou faça sol, na altura em que se quer ceifar.

João Vieira: Então, se os trigos são pulverizados com glifosato cerca de 15 dias antes da ceifa, podemos partir do princípio de que também há glifosato no grão, que há-de ser transformado em farinha. E o glifosato, tanto quanto se sabe, não se recomenda.

Rui: Há vários anos que o Parlamento Europeu pede a proibição do uso do glifosato. A suspeita é de que tenha impacto no desenvolvimento de doenças como o cancro. E já há evidência científica que aponta nesse sentido.

Maria: Do outro lado, temos a Agência Europeia de Produtos Químicos a dizer que o glifosato não pode ser classificado como cancerígeno. E havia um prazo para se chegar a uma decisão: Dezembro de 2022, altura em que caducava a licença para o uso do glifosato na União Europeia.

Rui: Mas essa decisão foi adiada por mais um ano, para o final de 2023. Tudo depende de um relatório da Agência Europeia de Segurança Alimentar… que ainda não foi entregue. Enquanto isso não acontece, o glifosato continua a ser utilizado livremente na União Europeia.

Maria: E não é o único. Há outros pesticidas que até estão banidos no espaço europeu, mas chegam na mesma a nossa casa em alimentos vindos de outros continentes.

Rui: Vamos a um exemplo concreto das possíveis consequências do glifosato. E para isso vamos voltar à Monsanto. Em 2018, esta empresa agroquímica foi comprada pela Bayer, a gigante alemã da indústria farmacêutica.

Maria: Até podia ser um bom negócio, mas revelou-se um verdadeiro presente envenenado. Nos últimos anos, a Bayer teve de responder em tribunal por mais de 100 mil processos judiciais. Todos eles apontam a exposição ao glifosato como causa de cancro e põem as culpas na Monsanto.

Rui: A Bayer já pagou mais de 11 mil milhões de dólares em indemnizações para fechar muitos destes processos. Mas até hoje nunca reconheceu responsabilidade pelos efeitos do glifosato na saúde destas pessoas.

Há outros produtos e tecnologias que a indústria convenceu os agricultores a usar com a promessa de produzir mais e com maior eficiência.

Carlos Faísca: Isto precisa de muito mais recursos do que precisava a agricultura chamada orgânica. Precisa de muito mais adubos – uma quantidade monstruosa de adubos. Precisa, nalguns casos, de muito mais água. E muitas vezes estes tipos de plantas… elas às vezes são importadas, não têm milhares de anos, como têm as outras, de adaptação às condições agroecológicas locais. E, portanto, aquilo até tem melhor produtividade, mas só tem maior produtividade se você meter aquele adubo, se comprar aquela máquina, etc, etc, etc.

Rui: Vemos isso acontecer em muitos outros sectores. Cria-se uma relação de dependência. Quem quer produzir fica aparentemente encurralado, sem escolha.

Maria: Hoje, apenas quatro empresas controlam grande parte do mercado de sementes e pesticidas: a alemã Bayer, a suíça Syngenta, que na verdade está nas mãos do Estado chinês, a americana Corteva e uma outra multinacional de origem alemã, chamada BASF.

Rui: Curiosamente, são também quatro as empresas que controlam entre 70 a 90% do comércio global de trigo.

A história do trigo é uma história de luta pelo poder. Hoje está concentrado nas mãos de poucas empresas, mas durante séculos foi disputado por vários impérios, como o romano, o otomano ou o russo.

João Vieira: Porque o pão é uma questão política desde há milhares de anos. Lembramo-nos desta questão: Roma, pão e circo. Faltou o pão em Roma e foi o cabo dos trabalhos. Se não há pão, dêem-lhe circo.

Rui: Vemos isso ao longo da história com outros alimentos, como o café, o cacau, o açúcar e as especiarias. Todos estes impérios chegam ao poder e mantêm-no através do controlo das rotas de comércio, em especial as do trigo. Um exemplo particularmente relevante nos dias de hoje é o da Rússia.

Maria: Na década de 1760, o Império Russo invade e conquista vários territórios estratégicos em busca dos solos mais férteis. É o caso da Ucrânia. Tudo isto faz parte de um plano ambicioso de Catarina a Grande para dominar a produção de trigo e alimentar toda a Europa. Para isso, a imperatriz ordena a construção da cidade de Odessa, hoje um ponto estratégico no conflito entre a Rússia e a Ucrânia.

Rui: Odessa é pensada para ser um porto livre, sem taxas de importação ou exportação. Falta só a oportunidade ideal para abastecer a Europa. E essa porta vai ser aberta pela revolução francesa.

Maria: A população está em grande crescimento, mas não há alimento disponível para todos. O preço dos cereais e do pão dispara. A fome também.

Rui: Sem pão para comer, o povo francês revolta-se contra a monarquia. João Vieira conhece bem a história e fala-nos de um episódio particular associado à rainha Maria Antonieta.

João Vieira: Quando lhe foram dizer que o povo de Paris estava revoltado com fome, porque não havia trigo ou não havia farinha. “Bom, se não têm pão, comam brioche”. Pura ignorância, porque se não havia farinha para o pão, também não havia para brioche. Mas também aprendi mais tarde que isso lhe foi atribuído, mas que ela não o disse, o que não deixa de ser fantástico. [risos]

Rui: Até hoje não há qualquer prova de que Maria Antonieta tenha dito tal coisa, mas a frase ficou como símbolo da distância entre a nobreza e o povo em França.

Esta situação de escassez e fome volta a agravar-se com a subida de Napoleão ao poder, e com os milhares de campos de trigo destruídos pelas invasões napoleónicas. Estamos no início do século 19. A Europa tem um problema. O Império Russo tem a solução: trigo barato pronto a fornecer.

Maria: Quando Napoleão é derrotado e a estabilidade regressa à Europa, são criados novos impostos para travar a entrada do trigo russo. A porta abre-se novamente quando um fungo vindo das Américas destrói plantações de batata um pouco por toda a Europa. A batata é por esta altura o principal alimento dos camponeses, que cultivam cereais para vender e batata para comer.

Rui: Uma vez mais, a fome ataca. E as nações europeias vêem-se obrigadas a baixar as barreiras à entrada de cereais estrangeiros. Mas desta vez o Império Russo não está sozinho.

Carlos Faísca: Entretanto, nos Estados Unidos da América, na Argentina, a partir de meados do século XIX, talvez um bocadinho antes, aquilo que commumente é conhecido por revolução dos transportes, revolução industrial e também o desbravamento de áreas gigantescas que nunca tinham sido cultivadas, tinham a fertilidade ao máximo…. isso, aliado com a construção do caminho de ferro, o barco a vapor, o telégrafo, etc, faz com que o preço do trigo caia muito e que a importação de trigo da América se torne muito mais competitiva do que o próprio trigo que era cá produzido. Cá na Europa e cá em Portugal. Isso também se aplica a outros produtos agrícolas, mas vamos focar-nos só no trigo.

Rui: O historiador Carlos Faísca aponta para a ascensão dos Estados Unidos. Nesta altura, o poderio norte-americano é evidente. No seu auge, a Rússia exporta 1 milhão de toneladas de trigo por ano a partir de Odessa. Dos Estados Unidos sai a mesma quantidade… por semana. E os navios não voltam vazios – levam milhões de imigrantes europeus, cuja viagem para os Estados Unidos é, na prática, financiada pelo trigo norte-americano.

Este período traz uma avalanche de impactos, que ainda sentimos hoje. São impactos socioeconómicos, mas também para a nossa saúde.

Maria: O trigo barato é transformado em pão barato e cada vez mais refinado – com menos fibra e menos nutritivo. Até aqui, o pão branco, feito de trigo, só estava ao alcance das elites. Na segunda metade do século XIX passa a estar ao dispor de todos.

Rui: É usado pelos trabalhadores, sobretudo os da indústria, para fazer sandes: um almoço rápido, fácil de transportar e barato. E nessas sandes aparecem carne e derivados cada vez com mais frequência e em maior quantidade. O que também é uma consequência do pão branco.

Maria: Na moagem, a farinha é separada do farelo e do gérmen. São dois subprodutos usados na pecuária para alimentar os animais. Com tanto trigo, há farelo e gérmen de sobra para produzir mais animais e mais carne.

Rui: No mundo do que comemos, tudo está ligado. Entramos numa nova era do pão, para a qual João Vieira tem um nome especial.

João Vieira: É um pão de fantasia para mim, porque não tem o conteúdo nutricional que devia ter. Houve um equívoco histórico, do meu ponto de vista, que foi a história do pão branco ou branquinho. O pão branquinho não é uma referência. O pão deve ser escuro por natureza. Eu até vos vou buscar um bocadinho do meu pão para vocês provarem, para verem.

Rui: Sim, nós ficamos aqui à espera.

Estamos à porta de casa de João Vieira, nesta aldeia do Cadaval, no limite do distrito de Lisboa. E pelos vistos em breve teremos companhia. [telemóvel toca]

Mas vamos ao pão. Então o que é que temos aqui?

João Vieira: Este é o pão que eu como, é um pão de trigo barbela, 100% barbela. Vamos lá ver. Escuro, Naturalmente escuro. E o que é que faz este escuro? É a própria casca do trigo, do baguinho. Porque eu é que faço a moagem e faço a moagem de modo que a casquinha do bago também seja transformada em farinha. E isso é importante porque os nutrientes estão sobretudo na casca do grão, tal como na casca da fruta. Pronto, provem o pãozinho, se faz favor!

Rui: Provamos todos o pão. E enquanto o saboreamos lançamos uma pergunta.

Vera Moutinho: Então diga lá, acha que hoje a maior parte das pessoas não sabe que pão está a comer.

João Vieira: Não.

Rui: A voz que ouves ao fundo é a da Vera Moutinho, que produz connosco este podcast. Olhamos todos para o pão quase como se fosse um artefacto antigo. Não é o mais vistoso que vais encontrar. Mas só o facto de nascer de um trigo ancestral, o barbela, já faz deste pão algo especial.

João Vieira: Oh Isalinda… podes vir!

Isalinda Damas: Mesmo quando não morava aqui perto vinha ca na mesma, não é sr. João? E porque me apercebi de que o meu corpo não quer mais o dito trigo normal fabricado pela indústria. E desde que mudei para a farinha do senhor João a fazer pão de fermentação natural… estou muito mais feliz e sabe muito melhor.

Rui: Isalinda Damas sabe que leva consigo algo pouco comum, que não encontramos na prateleira do supermercado. Mas talvez nem ela saiba quão raro é este trigo.

João Vieira: Há aqui uma parte importante que é: o nosso país não tem trigo.

Rui: Portugal só produz cerca de 6% do trigo que consumimos. Tudo o resto é importado.

Maria: Mas nem sempre foi assim. Voltemos ao século 19.

Rui: Tal como o resto da Europa, Portugal adopta medidas para travar a entrada de trigo barato, agora sobretudo dos Estados Unidos.

Carlos Faísca explica-nos melhor.

Carlos Faísca: Isto começa em 1889. Era ministro Elvino de Brito. Mais tarde, dez anos mais tarde, publica a chamada Lei da Fome. É assim que é conhecida, que é a proteção do trigo. E começa mais ou menos, portanto, 100 anos de protecção do trigo, cujo expoente máximo será a famosa campanha do trigo.

Rui: A campanha é lançada em 1929, durante a Ditadura Militar, e prolonga-se até ao Estado Novo. O objectivo é claro: tornar Portugal autosuficiente em trigo. O Estado põe em marcha uma série de medidas para apoiar a produção nacional, em particular no Alentejo.

Com a Campanha do Trigo, os agricultores têm acesso a maquinaria, adubos, sementes, assistência técnica e até apoio financeiro.

Carlos Faísca: Há então uma grande introdução de trigos, sobretudo italianos, que vão progressivamente substituir os trigos que já cá estavam pelo menos há 500 anos. Começa a entrar o Quaderna, Roma, Pirana, Mentana. Tudo nomes que soam um pouco a Itália. Há também alguns trigos argelinos, alguns trigos franceses, como o Datel, um ou outro americano, mas sobretudo eles vêm de Itália.

Rui: Estas variedades de trigo vão ganhando terreno. São o par perfeito para uma produção mais mecanizada. E ainda assim o casamento em Portugal não foi feliz.

Carlos Faísca: E portanto produção de trigo nunca teve grandes rendimentos unitários. Porque é que ela existiu? Por motivos políticos. Porque desde 1889 que ela foi altamente protegida pela política económica dos diversos regimes que se seguiram: da monarquia constitucional, da primeira República, do Estado Novo e dos primeiros anos da democracia. Ela só muda com a Política Agrícola Comum. E porque é que muda com a Política Agrícola Comum? Porque a gente não vai estar a apoiar trigo onde ele é pouco eficiente, vamos apoiar outras produções.

Rui: A União Europeia e a Política Agrícola Comum vêm deixar a nu uma realidade: historicamente, Portugal nunca produziu muito trigo por hectare.

Carlos Faísca: A produtividade na Alemanha ou França é inimaginável em relação à portuguesa. Porque nós não temos as melhores condições edafoclimáticas para a produção de trigo. Ora, cá quando está calor não chove. E quando chove está frio. E esse é um grande problema. Depois o solo também não é o melhor. Os solos são na sua maioria esqueléticos, finos, delgados e, portanto, têm pouca capacidade de retenção de humidade, de uma forma geral.

Rui: Ainda assim, o Ministério da Agricultura quer agora duplicar a produção nacional de cereais.

Maria: A justificação é a guerra na Ucrânia, a instabilidade no abastecimento e as consequências na disponibilidade e no preço. Só que os planos para resolver cá dentro o problema da dependência externa de trigo esbarram na falta de água e em anos consecutivos de seca severa e extrema. E esse problema afecta também outros alimentos.

Rui: Como conseguir mais resiliência na produção alimentar? É possível tornar este sistema agrícola mais forte? Ou será que está mesmo esgotado?

Carlos Faísca: Eu, pelo menos pessoalmente, tenho muitas dúvidas da sustentabilidade a longo prazo do modelo agrícola atual.

Rui: Para ajudar a encontrar respostas, uma equipa de investigadores da qual Carlos Faísca faz parte está a olhar para o passado, para as sementes, como guardiãs de informação valiosa. No projecto ReSeed, da Universidade de Coimbra, a convicção é de que estas sementes podem dar pistas para construir sistemas agrícolas mais resilientes.

Carlos Faísca: Nós andamos atrás desta informação. Primeiro para a salvaguardar. E depois, eventualmente, para dizer aos agrónomos: olhe tem aqui. E não é estarmos a ensinar os agrónomos, porque eles sabem muito mais do que nós do ciclo vegetativo e dessas coisas todas. Mas têm uma memória histórica que eu reparei que é curta. Eu falo com agrónomos e dizem me coisas do estilo: epá, esse trigo é muito antigo, isso é para aí de 1930. Pois, eu tenho um de 1570. O registo mais antigo que consegui obter na pesquisa documental datam do século XVI e de trigo anafil no Alentejo, que é um trigo duro, e trigo barbela, na zona de Trás-os-Montes.

Rui: A lista de variedades é longa.

Carlos Faísca: Base de dados… variedades…

Rui: Carlos Faísca tem ao colo um computador.

Carlos Faísca: Deve ter quase 100, mais de 100 variedades de trigos .

Rui: Abre uma lista que parece não acabar.

Carlos Faísca: Trigo rubião ou trigo ribeiro ou trigo javardo. Eu adoro este nome. Há nomes espetaculares. Ou trigo canoco, ou trigo asa de corvo.

Rui: Carlos tem percorrido o país a recolher as memórias de agricultores mais velhos. Alguns com mais de 90 anos.

Carlos Faísca: Eu levo uma lista de trigos antigos e o único que aparece sempre é o barbela. O único que eles reconhecem sempre é o barbela.

Rui: Hoje Portugal produz pouco trigo. E desse pouco, quase nada é barbela. Mas no início da Campanha do Trigo o barbela está em todos os distritos do país. A partir de 1930, começa a desaparecer ao ritmo da chegada dos trigos modernos.

João Vieira: É uma das razões pelas quais eu tenho assumido esta atitude de produzir trigo, sobretudo antigo, quando os outros não o querem fazer. Porque entendo que o nosso país não pode perder o património genético que tem na área dos trigos, nem o conhecimento a eles associados, porque é preciso um conhecimento.

Rui: É pela mão de João Vieira e de mais alguns agricultores que o barbela renasce nos últimos anos.

Maria: Esse ressurgimento é também muito motivado por uma nova vaga de padarias artesanais e de consumidores cada vez mais informados.

Rui: Do lado destes agricultores, há um sentido de partilha e de protecção de um tesouro.

João Vieira: Não temos nenhuma organização formal, pelo menos por enquanto. Pensámos atribuir nos um nome para nos identificarmos. E encontrou-se que, sendo isto uma série de moicanos, o indicado seria uma tribo. E daí a tribo do barbela.

Rui: Este grupo de agricultores tem uma proposta para responder à crise do sistema alimentar. Tal como as tribos de moicanos, acreditam no poder da comunidade. Para a tribo do barbela, a solução tem de ser local e não global.

João Vieira: Local e circuito curto. O padeiro da aldeia faz a farinha e transforma em pão o trigo que foi produzido pelo vizinho. Este é o caminho e mais nada. Sem estar a pensar lá em grandes coisas de industrializações. Portanto, padeiros que possam fazer a transformação do trigo em farinha, consumidores que possam eles também ter o seu moinho de trazer por casa, fazerem eles, divertirem-se a fazer a farinha e o pão. Este é o caminho para que esta ideia funcione e se concretize.

Rui: Percebemos bem o que João Vieira quer dizer.

Maria: É que nós também temos um desses moinhos de trazer por casa. É uma peça de madeira, mais ou menos do tamanho de um microondas.

Rui: Mas não será demasiado romântico imaginar um moinho em cada casa?

João Vieira: Ahhhh, exatamente, mas isso eu sou um romântico.

Rui: Há um lado sedutor nesta ideia, em tudo aquilo que representa. Ao mesmo tempo, a proposta da tribo do barbela parece uma realidade muito distante.

Já ouvimos João Vieira e o historiador Carlos Faísca dizer que o modelo actual de produção, comércio e consumo de trigo está esgotado. A solução pode estar no passado.

Carlos Faísca: E não estou aqui dizer que temos todos de voltar todos ao século XVIII. Se voltarmos todos de repente ao século XVIII morremos de fome. Não é isso que estou a dizer. O que estou a dizer é que poderá encontrar-se uma posição de equilíbrio. E é isso que de certa forma, também me motiva: é tentar encontrar uma posição de equilíbrio entre esta agricultura e este modelo produtivista que me parece que esgota os recursos mais depressa do que os repõe, e o modelo anterior, que era o que existia, que está do meu ponto de vista bastante bem adaptado às condições agroecológicas e ambientais. Mas também não resolve tudo, porque a verdade é que as pessoas comiam pior.

Rui: Por vezes podemos cair nesse erro. Naquela ideia do ‘antigamente é que era bom’. Também é ingénuo acreditar que tudo é melhor agora. Fugimos desses tempos de subnutrição e de escassez, mas caímos na nossa própria armadilha.

Maria: É importante deixar uma ideia bem clara aqui quando falamos de fome: neste momento produzimos o suficiente para alimentar 10 mil milhões de pessoas. E a população mundial ainda está nos 8 mil milhões.

Rui: Há um desequilíbrio na distribuição de alimentos. De um lado há excesso de consumo e desperdício. Do outro há fome.

Maria: E são os países e as populações mais vulneráveis que enfrentam as piores consequências de conflitos armados como o da Rússia e da Ucrânia. É também à porta destas pessoas que a crise climática está a bater em primeiro lugar.

Rui: A agricultura é já uma das vítimas mais visíveis de fenómenos climáticos extremos, como secas, ondas de calor, cheias ou incêndios. Por isso, hoje já não podemos dar por adquirido que haverá sempre trigo, que teremos sempre pão para comer. Em Portugal o trigo é tradicionalmente produzido em sequeiro, ou seja, sem rega. Mas como podemos produzir se não chove e se as temperaturas continuam a subir? E se, mesmo quando chove, os nossos solos pobres têm pouca capacidade para reter essa água? Em cenários de escassez, a água não chega para tudo.

Maria: Bom, é certo que podemos continuar a comprar trigo lá fora, como sempre o fizemos. Mas num cenário de alterações climáticas nem isso é garantido. França, o maior produtor da Europa e o quinto maior do mundo, é também o nosso principal fornecedor de trigo. Mas a falta de chuva, as secas consecutivas e as ondas de calor já estão a comprometer a produção francesa.

Rui: Uma situação que se repete em muitos outros países que produzem boa parte do trigo consumido globalmente.

Antes de uma revolução no pão que comemos, teremos de começar por uma revolução no trigo que produzimos?

O trigo moderno, trazido pela revolução verde, fez aumentar a produção. Conseguiu isso com os mesmos fertilizantes e outros produtos químicos, aplicados em grande escala.

Maria: Em contrapartida, perdemos a capacidade de adaptar o cultivo ao seu próprio contexto – social, económico, ambiental.

Rui: Comprometemos a nossa saúde. E ainda acentuámos os efeitos das alterações climáticas. Há lições no passado que temos de recuperar.

Carlos Faísca: Há cinco anos ninguém pensava que se estava aqui a discutir produção de cereais outra vez. E de repente, de um dia para o outro, passou-se a discutir. E a certa altura nós achávamos que dominávamos a natureza. Nós, a humanidade, estou a falar da humanidade – mudámos a natureza e já não precisamos do que ficou para trás. Mas volta e não volta temos um choque de realidade. E se no passado esta gente durante milhares de anos produziu sem barragens e com adubos só orgânicos e às vezes quase sem adubos… alguma coisa eles hão-de saber. E o nosso papel, que nos auto-intitulamos historiadores, é garantir que a sociedade tem o conhecimento que ficou no passado. Esse para mim é que é o principal papel do historiador. Até porque eu acho – depois podem criticar-me – acho que o passado tem importância para perceber o presente e, sobretudo, pode ter também, no caso da agricultura, importância para o futuro.

Rui: Seguimos o rasto do pão desde os princípios da civilização até à tua mesa. Continuamos o caminho com os olhos postos naquilo que aí vem.

Maria: Que planeta nos espera daqui para a frente?

Rui: E o que vamos deixar às gerações futuras?

O que é que o nosso pão tem a ver com as alterações climáticas? É isso que queremos perceber a seguir.

 


 

Créditos

 

Rui: Este episódio foi produzido, escrito e editado por mim Rui Catalão, pela Maria Antunes e pela Vera Moutinho.
O podcast Próprio para Consumo é uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática. Esta primeira temporada tem 4 episódios e conta com o apoio da ANP|WWF. Este projecto vive para lá dos episódios do podcast. Nos sites e nas redes sociais do Público e dos Kitchen Dates há mais para ler e ver sobre os temas de cada episódio. Até à próxima.

Os episódios

1. Que pão andamos a comer?

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2. Como é que chegámos até aqui?

3. O que é que o meu pão tem a ver com alterações climáticas?

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4. O bom pão quando nasce é para todos?

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Apoio

A produção do podcast “Próprio para Consumo” conta com o apoio da ANP|WWF, no âmbito do Eat4Change, uma iniciativa internacional para promover a transição para dietas sustentáveis. O E4C é cofinanciado pelo Programa de Educação e Sensibilização para o Desenvolvimento (DEAR) da Comissão Europeia.

Parceiros

O “Próprio para Consumo” faz parte da rede de podcasts independentes do PÚBLICO e é produzido em parceria com o Azul, a secção do jornal dedicada ao ambiente e à crise climática.