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4. O bom pão quando nasce é para todos?

Para alimentar o mundo de forma sustentável, é fundamental produzir comida com os recursos naturais que existem. Mas parece que nos recusamos a aceitar esses limites, a adoptar uma cultura da suficiência. Se toda a gente consumisse como um português, precisaríamos de quase três planetas para suportar o nosso estilo de vida (ao mesmo tempo que um em cada quatro portugueses tem dificuldade em pagar a conta do supermercado). E nessa economia do excesso e da superabundância há uma realidade quase invisível, pouco falada, escondida: o desperdício alimentar.

Transcrição do episódio

Rui: O suficiente já não é suficiente. Queremos sempre mais. Uma sociedade de excesso, super abundância, que contrasta com a realidade de outras regiões do mundo onde a fome continua a crescer

Maria: E até com a vida de um em cada quatro portugueses, que têm dificuldade em pagar a conta do supermercado.

Rui: Queremos saber se o bom pão quando nasce é para todos. E, mais uma vez, o que vale para o pão vale também para muitos outros alimentos. Podemos resolver o problema da qualidade sem olhar para a quantidade?

Monica Truninger: Estamos pior em termos de alimentação, mas eu acho que estamos cada vez mais com mais ferramentas para saber decidir ou para saber caminhar trajetórias para maior saúde e maior sustentabilidade, que provavelmente antigamente não eram tão visíveis. Não havia uma consciência tão grande disto, dos impactos que a alimentação tem no ambiente, não se falava nisto.

Milene Charneco: Toda a vida ouvi dizer que o barato sai caro [risos]. Por isso mais vale investir um bocadinho mais. Isso reflete se a curto prazo. Às vezes, não vemos logo.

Susana Paiva: Num mundo ideal, todos têm aquilo de que necessitam na exata medida daquilo que necessitam, em tudo na vida. Mas eu acho que vai sempre haver excesso. Aliás, um dos problemas é exatamente o excesso do excesso.

Rui: Eu sou o Rui Catalão.

Maria: E eu sou a Maria Antunes.

Rui: Este é o quarto e último episódio da primeira temporada do podcast Próprio para Consumo. Uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática.

Se olhares para a comida que tens no prato podes ver muita coisa. Mas talvez não vejas isto: andamos a comer à custa do planeta. O sistema alimentar está em crise e é mais do que uma vítima das alterações climáticas; também contribui para as tornar mais perigosas.

Maria: Neste quarto episódio voltamos ao Alentejo para visitar um casal que produz trigo biológico há mais de 20 anos e mergulhamos na montanha do desperdício alimentar.

Milene Charneco: Como é que vão? Está boa? A sua pequenina?

Maria: Está óptima. Já está com um ano e meio.

Rui: Desta vez estamos na Messejana, a meio caminho entre Beja e Odemira, onde temos vindo nos últimos anos.

Maria: Descobrimos a Milene e o Vitor quando andávamos à procura de produtores com quem pudéssemos trabalhar.

Rui: Na altura tínhamos um restaurante, o primeiro em Portugal sem caixote do lixo, e que tinha outra particularidade que o tornava único: só usávamos ingredientes locais e biológicos. Quando chegámos aqui pela primeira vez vínhamos à procura de trigo e de leguminosas.

Maria: Encontrar trigo português já seria difícil: apenas 6% daquilo que consumimos é de produção nacional. Se juntarmos a isto a certificação biológica, é como procurar uma agulha num palheiro.

Rui: Até ao dia em que conhecemos a Milene e o Vitor, e tudo ficou mais simples.

Milene Charneco: O Vitor já faz agricultura biológica certificada há 23 anos e faz muita diferença.

Rui: Chegamos e ficamos à conversa à sombra de uma oliveira, plantada pela família de Vitor há várias gerações. Mal sabíamos nós que também íamos almoçar debaixo dela.

Milene Charneco: O que eu projetei, foi… trouxe o almoço. Nada como nós estarmos no meio de… no meio de quatro paredes estão vocês fartos de estar. Então trouxe uma mesa com tudo…

Vera: Ah, trouxe mesa?

Rui: Maravilha.

Milene abre as portas de uma pequena carrinha e tira de lá um restaurante ao ar livre.

Milene Charneco: A mesa, os produtos, o almoço e podemos…

Vítor Pinto: Também o grão e a farinha?

Milene Charneco: Sim, eu também trouxe.

Vítor Pinto: Trouxeste?

Milene Charneco: Sim, um bocadinho de tudo.

Rui: Há pão, azeitonas, salada e uma grande panela.

Maria: Tem óptimo aspecto.

Rui: Lá dentro uma feijoada com batata, couve, cenoura, tomate, alho, cebola, hortelã. Tudo isto foi produzido aqui mesmo, debaixo dos nossos pés.

Milene Charneco: Nós quase que estamos independentes do exterior.

Maria: Pois, vocês aqui têm tudo. O que é que não produzem que vos faça falta no dia a dia?

Milene Charneco: Tempo. Não produzimos tempo. Ainda.

Rui: Enquanto comemos e desaceleramos…

Milene Charneco: Espero que gostem da sopa.

Maria: Está ótimo.

Rui: Queremos saber mais sobre a sua história.

Milene Charneco: O Vitor sempre viveu na agricultura, cresceu. A vida obrigou-o, entre aspas, a optar por este caminho. O pai dele faleceu muito jovem. E o Vitor tinha 20 anos. Podia ter seguido outro caminho. A mãe não concordava muito que ele viesse para a agricultura porque já sabia o que é, e ainda para mais sem a ajuda do pai, tão novo. E ele disse que não, que queria continuar aquilo que o pai tinha sempre feito e a família dele toda para trás. Estas oliveiras foram plantadas pelo teu avô, bisavô…

Vítor Pinto: Era o meu pai pequenino andaram abrindo as covas para elas. Era tudo feito à mão, não era com máquinas como agora.

Rui: É Milene quem apresenta os dois.

Milene Charneco:Eu também, quando era miúda não pensava vir para a agricultura.

Rui: Sonhava com artes, tal como agora acontece com a filha de 16 anos.

Milene Charneco: Mas isto não é como pode ser, é como se pode fazer. E tirei o curso, depois entretanto, de engenharia alimentar. Ainda trabalhei com o curso, depois comecei a namorar. Aliás, quando comecei a tirar o curso já namorava com o Vítor. Isto uma coisa leva a outra [risos]. Isto já era muito trabalho só para o Vítor, porque os clientes começavam a pedir outras coisas, como o trigo.

Rui: Há mais de 20 anos que fazem agricultura biológica certificada.

Milene Charneco: Temos olival, temos animais, temos pastagens, temos árvores de fruto, mas tentamos conciliar toda a atividade agrícola, não só num período, mas ao longo do ano todo.

Rui: No restaurante ao ar livre que Milene improvisou temos vista para uma seara de trigo. E com tanto trigo à mão de semear ainda aproveitam para fazer pão.

Milene Charneco: É um privilégio. Acha que muita gente faz o que nós fazemos? Quantas pessoas você conhece que produz o trigo, vai ao moleiro fazer a própria farinha e faz o pão e come o pão é dá à família o pão? São muito poucos.

Rui: Quantas horas tem o vosso dia?

Milene Charneco: O nosso dia tem o mesmo das outras pessoas. Depende é a maneira como nós o aproveitamos.

Rui: Associamos a agricultura a trabalho duro, pesado, que desgasta e deixa marcas.

Maria: Com Milene e Vítor encontramos uma outra visão, a do copo sempre meio cheio, apesar do esforço.

Rui: Têm 160 hectares, que são trabalhados em permanência por apenas duas pessoas: eles próprios.

Maria: Vocês nunca tiram férias…

Milene Charneco: Tiramos, nós estamos de férias o ano todo [risos]. Ir de férias… isso dá muito trabalho. Já viu o que é fazer quilómetros para ir para a praia – no mínimo temos que fazer 50 a 60 quilómetros para ir para a praia. Temos que ir de manhã cedo porque depois é montes de gente.

Vítor Pinto: Areia escaldante, dá cabo dos pés.

Milene Charneco: Montes de calor, aquilo é areia por todo o lado – é uma complicação. As toalhas em cima umas das outras à beira da água. Se é um dia que o mar está soft, só o que se vê boiar é os protetores solares. Isso é muito complicado. Dá muito trabalho estar de férias,

Rui: Há um contraste enorme entre a vida deste casal e o ritmo a que vivemos nas grandes cidades.

Milene Charneco: Actualmente, com a vida muito preenchida, ninguém tem tempo para cozinhar, a maior parte das pessoas vai às compras e compra já a comida confeccionada, o prato confeccionado. O problema de base está aí.

Vítor Pinto: As pessoas não têm tempo.

Rui: Se calhar já te sentiste assim. Sempre na rodinha do hamster. Nós também. A sociedade de consumo montou-nos uma ratoeira. Queremos perceber como é que chegámos a um ponto em que já nem sequer questionamos aquilo que comemos.

Monica Truninger: Olá, sou a Mónica Truninger. Sou socióloga e investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e há bastantes anos que trabalho sobre as questões da alimentação, do consumo e da sustentabilidade.

Rui: Dificilmente encontraríamos pessoa mais certa para nos guiar.

Monica Truninger: Por um lado, uma procura de uma modernização alimentar, em que a influência da da Europa Ocidental, quer dizer no sentido de todos os países centrais da Europa, não é? Todos aqueles hábitos alimentares em que, sei lá, os hambúrgueres, a comida rápida, a comida de conveniência, mais processada, tudo isso começou a entrar no mercado português. E, ao mesmo tempo, houve também toda uma mudança ao nível da provisão alimentar. Começaram a abrir os supermercados, depois os hipermercados e no início dos anos 80 começam a abrir então nos hipermercados maiores e isso abre depois todo um leque de variedade, diversidade de produto – apesar de muitas vezes estes produtos até são constituídos pela mesma base e depois há uma fragmentação para determinados tipos de perfil de consumidor e isso dá a sensação que a pessoa tem mais escolha. Mas na realidade a nossa escolha é altamente condicionada por vários factores.

Maria: o que está mais à mão, a cultura, a rotina, o preço, a educação, a publicidade, a influência dos amigos ou da família.

Rui: Independentemente do factor que mais pesa naquilo que tu comes, há uma estrutura que sustenta e promove tudo isto. É dessa estrutura que queremos falar-te.

Monica Truninger: A alimentação pode ser algo para eu ter o máximo lucro possível sem me interessar minimamente com o impacto que tenho no ambiente ou na saúde. ‘Não quero saber. Eu quero tirar o máximo de valor económico possível’, que é um bocadinho a visão de mercado curta e não de perspectiva longa e de sustentabilidade. E de pensar nas gerações futuras e no próprio planeta, não é? Se bem que o planeta, pode-se… vai cá estar durante muito mais tempo, nós é que podemos desaparecer daqui – a espécie humana.

Rui: A agricultura de grande escala é um exemplo de como nas últimas décadas se pensa mais no lucro do que naquilo que se destrói pelo caminho.

Maria: Na Messejana, Milene e Vitor resistem a essa tentação.

Milene Charneco: Nós aqui estamos no cantinho ainda. Embora estejamos rodeados de super intensivo e intensivo, ainda estamos um bocadinho isolados.

Rui: Numa região tradicionalmente de sequeiro, foi a chegada da água abundante da barragem do Alqueva, há mais de 20 anos, que transformou esta paisagem.

Vítor Pinto: Como chegou o Alqueva, está tudo ocupado, ou amêndoas ou olival.

Maria: Intensivo?

Vítor Pinto: Pois, intensivo.

Vera: Mas esses terrenos estavam cultivados?

Vítor Pinto: Era tudo cultivado de cereais… até a chegada do Alqueva. Um ou outro é que tem mantido a fazer culturas, cereais, mas a maioria está tudo… porque isto é assim: depois vêm os investidores estrangeiros, oferecem muito dinheiro pelos terrenos, as pessoas vendem.

Rui: A agricultura como um investimento puramente financeiro.

Vítor Pinto: Os cereais não rendem tanto. Este ano, a azeitona, um ano que houve pouco, a azeitona andou nos 80… ouvi falar em 80 e tal cêntimos o quilo. Um hectare de olival super intensivo… por acaso houve um rapaz que esteve comigo disse que o irmão dele tinha um olival com três anos, deu seis toneladas por hectare e tinha um com seis anos… o de três anos deu 6 e o de 6 anos deu 18 toneladas por hectare, 18 toneladas vezes 80 cêntimos por hectare… é fazer as contas.

Rui: São 14 mil e 400 euros por hectare.

Vítor Pinto: Eu cá no trigo, aqui no biológico, tiro – deste tigre – tiro aí 2000, 2500, 1800 [euros], depende do ano. Não tiro mais.

Rui: Tigre é o nome da variedade de trigo que Milene e Vítor cultivam aqui.

Maria: Embora não seja particularmente antigo, também ele está na lista do historiador Carlos Faísca, que ouvimos no segundo episódio.

Vítor Pinto: Epá, eu tenho usado essa variedade. É uma variedade portuguesa, já mais antiga. Antiga… o meu pai semeava, eu tenho semeado, pronto. É uma variedade que se adapta bem, pronto. Não produz muito e nem produz pouco. Não dá chatice, não tem doenças não tem nada. O que interessa é isso. É uma variedade que se adapte bem às condições do clima que a gente tem no momento. Pronto. E que não tenha doenças, não tenha pragas, e que seja resistente à seca, que é o que a gente tem aqui mais.

Maria: Cada vez mais.

Vítor Pinto: Ah, pois. Hoje se a gente não regar não dá nada.

Rui: Para compararmos com a rentabilidade do olival super intensivo temos de saber a que preço Milene e Vítor vendem o trigo.

Milene Charneco: 80 cêntimos o quilo, o mesmo preço que vendíamos no início.

Rui: Que foi em?

Milene Charneco: Há quanto tempo? Nem sei, não tenho noção.

Rui: Mas quê: dez anos?

Milene Charneco:Para aí.

Maria: Em dez anos não subiu.

Milene Charneco: Não.

Rui: A este preço, num ano bom recebem 2000 euros por hectare de trigo. Contra os mais de 14 mil euros do tal olival super intensivo de que Vítor nos falava. Sete vezes menos.

Maria: O olival parece um óptimo investimento.

Rui: Se não pensarmos em todas as consequências negativas que estão quase sempre por trás da produção em monocultura, intensiva, e em larga escala. Como a contaminação do ar, dos solos e dos recursos hídricos, a perda de biodiversidade e de fertilidade do solo, ou a desertificação.

Maria: Há uma relação directa: a agricultura industrial contribui para agravar os impactos das alterações climáticas, ao mesmo tempo que sofre as consequências desta crise.

Rui: Milene e Vitor tentam respeitar a terra e o ambiente.

Milene Charneco: Nós temos tentado preservar aquilo que já se fazia e temos tentado melhorar, dar mais condições – não só tirar do solo, mas também deixar cá alguma coisa para quem vem a seguir, para a nossa filha, para os nossos netos, embora ela queira teatro, seguir a carreira de teatro.

Rui: Podiam produzir alimentos de outra maneira ou praticar preços mais altos, à boleia daquilo que vêem acontecer à sua volta e tendo em conta os seus próprios custos, que também têm vindo a subir.

Maria: Em vez disso seguem outro caminho.

Milene Charneco: É trabalharmos o mais local possível com as pessoas daqui, deixar o rendimento aqui e fazer com que as coisas circulem, o dinheiro circule aqui e não que vá para fora. Andamos muito, trabalhamos muito com o consumidor final e também com as comunidades que aqui à volta do Alentejo. Tentamos vender num raio de 50 quilómetros e quando temos excesso de produção ou alguma cultura pontual, aí esse excesso de produção vai para a capital, para Lisboa, que eles conseguem absorver a maior parte do produto.

Rui: Gerem o seu negócio conscientes de tudo o que se passa à sua volta.

Milene Charneco: Porque nós não precisamos só de produzir, temos que pensar que precisamos de vender.

Rui: E fazem uma escolha intencional de manter preços acessíveis a todos.

Milene Charneco: Quem está no outro lado de consumidores, que nós também somos consumidores, também estão a passar por dificuldades muito grandes e nós temos que ter aquele equilíbrio, temos que ser uma balança. Não posso querer só para mim porque sei que a pessoa… quem ganha um salário mínimo nacional, o dinheiro não chega para tudo. Não chega para comprar uma carne, um peixe, um pão.

Rui: Um em cada quatro portugueses tem hoje dificuldade em pagar as despesas de alimentação. E os produtos biológicos são muitas vezes ainda mais inacessíveis.

Milene Charneco: Eu faço agricultura biológica. Podia vender o meu azeite, o grão, a farinha muito mais caro, com 20% ou 30% acima do preço que estou a vender atualmente, mas sei que esse produto depois não chegava à mesa das pessoas que ganham o salário mínimo nacional ou que têm mais do que um filho e nós ao não subirmos o preço a esse nível também estamos a ganhar. Não ganha só o consumidor, mas também ganhamos nós.

Rui: Há um altruísmo vincado nesta escolha. Um conceito de bem comum, que vai muito para lá da acumulação de riqueza própria. Se todo o pão começasse assim, talvez houvesse bom pão para todos.

Maria: Na economia do excesso e da superabundância há uma realidade quase invisível, pouco falada, escondida: o desperdício alimentar.

Susana Paiva: Cada refeição que nós conseguimos resgatar é bom em termos ambientais e além de ser bom obviamente para a barriga das pessoas.

Rui: A voz que ouves é de Susana Paiva, coordenadora do núcleo da REFOOD de Santa Maria Maior, em Lisboa.

Maria: Há mais de dez anos que o movimento REFOOD resgata toneladas de comida em boas condições para combater o desperdício alimentar e apoiar quem está numa situação de carência.

Rui: Os voluntários recolhem diariamente alimentos de supermercados, restaurantes, cafés, pastelarias e até hotéis.

Susana Paiva: O que acontecia era irem para o lixo. Aliás, o projeto REFOOD começou exatamente pela constatação disso, da incapacidade de haver comida boa… havia pessoas a passar fome, mas não saber o que fazer essa comida e ir para o lixo.

Rui: E um dos alimentos mais desperdiçados em Portugal é… o pão.

Maria: Ao entrar neste espaço da REFOOD na baixa de Lisboa, cedido pela Marinha Portuguesa, saltam logo à vista dois sacos cheios de pão.

Susana Paiva: Nós, o pão, temos desde pães grandes, para todos os gostos. Mas é que é mesmo bom. Com cereais. Quando eu digo cereais… o pão é todo de cereal. Mas com aqueles cereais, preto, centeio, trigo e milho e pronto, com passas, sem passas, com azeitonas, sem azeitonas, costuma vir uma grande variedade.Além dos grandes, costumamos ter também, por norma, aquelas bolas ou idênticas, aquelas mais pequeninas e individuais, também com muita variedade: pão de trigo, centeio, tudo. Há uma grande variedade.

Rui: As refeições prontas estão no primeiro lugar dos produtos que mais chegam a este núcleo. Logo a seguir estão o pão e os bolos.

Susana Paiva: Neste momento estamos a conseguir alcançar um bocadinho de tudo.

Maria: De segunda a sexta, as pessoas que recebem o apoio desta REFOOD começam a aparecer por volta das sete da tarde. Vêm duas vezes por semana.

Rui: Na lista de hoje estão cerca de 20 pessoas. Uma delas é Roman, da Ucrânia.

Roman Kuzmenko: Que eu estou cá eu já disse há 20 anos e quase todo o tempo estava a trabalhar fixo. Só últimos dois, três anos, como não tenho trabalho mesmo fixo, a REFOOD já dá para mim muito jeito.

Rui: Roman traz sacos para levar o cabaz e devolve as caixas que tinha recebido na visita anterior, com refeições prontas a comer.

Maria: Essa é uma das condições para o apoio se manter.

Rui: Espreitamos o menu de hoje.

André Scripilliti: Aqui tem macarrão com frango, legumes, salada, cereja, aqui é uma salada de macarrão e aqui é uma carne com arroz. E aqui também tem leite, tem sobremesa, que é mousse de chocolate. Aqui tem também grãos para colocar com o iogurte, para comer com frutas. Tem várias coisas diferentes.

Rui: Variedade e quantidade.

Maria: Ao conhecer este espaço da REFOOD, vem-nos uma ideia à cabeça: a de um supermercado paralelo onde podemos abastecer-nos de quase tudo.

Rui: Temos corredores com secções: farinhas, iogurtes, carne congelada, sopas, vegetais e frutas. Também vemos estantes com produtos especiais, que nos habituamos a ver em supermercados biológicos ou lojas gourmet. Há até produtos não alimentares, como fraldas ou roupa.

Susana Paiva: Recolhemos tudo o que o estabelecimento tiver sim, desde que seja bom para consumo humano, obviamente.

Roman Kuzmenko: Cenoura. Pode ser cenoura.

André Scripilliti: Quantas cenouras?

Roman Kuzmenko: Três, quatro. Sim, sim.

André Scripilliti: Maçãs? Quantas?

Roman Kuzmenko: Três, quatro, cinco.

André Scripilliti: Uns alhinhos?

Roman Kuzmenko: Uhhh, coisa que mata micróbios. Sempre ajuda no Verão.

Maria: Roman já está quase despachado. Leva só o suficiente para os próximos dias.

Rui: Esse é, aliás, um ponto em comum entre todos os que vimos passar por aqui. Querem levar o que chega para si, e deixar para outros.

Susana Paiva: Também tivemos cinco famílias que saíram. Todas graças a Deus por bons motivos. E que arranjaram emprego, organizaram as suas vidas de outra maneira e não precisaram mais. Mas é como lhe digo: todos eles entraram em contacto, todos eles deram explicações e dois deles disseram mesmo – além de todos eles agradecerem – disseram que queriam deixar para outros que necessitassem, que eles já não necessitavam.

Roman Kuzmenko: obrigado, boa noite. Até à próxima.

Rui: A REFOOD de Santa Maria Maior apoia 60 famílias, cerca de 80 pessoas.

Maria: Por semana distribui perto de 600 refeições, sem contar com sopas, vegetais crus e cozinhados, fruta, leite, iogurtes, sobremesas.

Rui: Além de bolos e pães, que são a última etapa na recolha do cabaz.

Margaret Brito: Pão, tem pão?

Ana Luiza Scripilliti: Tem pão. Tem esse aqui…

Margaret Brito: Olhe, dê-me assim. Este está molinho?

Rui: Cada um é livre de escolher o que quer levar e em que quantidade.

Margaret Brito: Esses amarelos, querida.

Ana Luiza Scripilliti: Esse aqui? Ele está um pouquinho duro.

Margaret Brito: Ai é? Então dá-me mais mole, que eu agora com o abcesso não posso comer muita coisa assim, não.

Ana Luiza Scripilliti: Tem bolo do caco.

Margaret Brito: Ai quero, querida. Do caco, do que o que for.

Rui: É Ana Luísa, uma entre quase 100 voluntários deste núcleo, quem hoje está na entrega dos cabazes.

Maria: São na maioria jovens e vêm de outros países. Alguns estudam, outros trabalham. Podem ficar uma ou duas semanas ou prolongar a experiência.

Ana Luiza Scripilliti: Eu sou coordenadora de voluntários internacionais numa empresa portuguesa que conecta voluntários com os projetos sociais e ambientais aqui. E aí umas três semanas atrás eu fiquei um turno e falei para a Susana: eu venho toda semana, agora. Eu acho que me surpreendeu muito a primeira vez que eu fui numa REFOOD, em São Sebastião, porque eu lembro que tinha uma pilha de coisas de padaria mesmo e eu não conseguia ver as pessoas atrás da pilha de tão alta que era. E eu falei: caraca, é um problema muito grande e é muito importante. É uma causa muito importante, porque você ajuda as pessoas e você ajuda a combater o desperdício.

Rui: Um cenário que não é muito diferente daquele que vemos nesta REFOOD.

Ana Luiza Scripilliti: É… todos os dias vêm dois ou mais sacos de pães e bolos. É um saco imenso mesmo.

Rui: Ana Luiza, 26 anos, não veio sozinha.

André Scripilliti: Eu vim por causa dela.

Rui: O irmão, André, 21 anos, também quis ajudar.

André Scripilliti: Então eu comecei a vir em todos os turnos, porque como eu tenho tempo livre, eu posso ficar das quatro – geralmente fico das quatro até às dez e meia da noite.

Rui: André estuda economia.

André Scripilliti: Eu acho que a primeira vez que eu estudei um pouco mais sobre isso foi na universidade. Eu fiz um trabalho sobre desperdício alimentar e eu fiquei chocado com os números.

Rui: Mergulhemos na montanha do desperdício alimentar. Em Portugal, deitamos fora 184 kg de comida por pessoa, por ano.

Maria: Temos o quarto número mais alto da União Europeia. Se pensarmos em pão, isto equivale a qualquer coisa como 3.680 carcaças – desperdiçadas por uma só pessoa.

Rui: Hoje sabemos que um terço de todos os alimentos produzidos no mundo é desperdiçado. E não é por acaso que falamos em pão. Está no topo daquilo que mais pomos no lixo.

Maria: Imagina que vais ao supermercado e compras três pães. Chegas à caixa, pagas e à saída deitas logo um no caixote do lixo. Na prática é isto que acontece.

Rui: E falamos no teu caixote do lixo porque os números também mostram que a maior fatia do desperdício alimentar está nas nossas casas: 68% do total. Quando pomos o pão no lixo, não é só o pão que vai. Há uma série de custos que são invisíveis.

André Scripilliti: A gente pensa nos alimentos só como aquilo que a gente ingere, mas tem tudo por trás daquilo, né? Todos os recursos que são usados. Então, quando a gente joga uma comida fora, não é só aquilo: está jogando dinheiro fora, está jogando água fora, terra fora. Então são todos os outros custos que estão envolvidos e que a gente não pensa. Então os custos sociais, custos ambientais, principalmente. A gente precisa pensar em tudo isso. Quando a gente fala de alimentação.

Rui: Se seguíssemos o nosso lixo até ao aterro, talvez tudo ficasse mais claro. Veríamos o que acontece quando o lixo que achamos que desaparece… afinal não desaparece. A comida vai apodrecendo, dentro do saco. Ao apodrecer emite metano, um gás com efeito de estufa.

Maria: Quando se fala em emissões ouvimos muito mais o nome ‘dióxido de carbono’, também conhecido como CO2. O gás que mais emitimos, sobretudo através da queima de combustíveis fósseis como fonte de energia.

Rui: O metano sobrevive pouco mais de uma década na atmosfera. Enquanto o dióxido de carbono que emitimos hoje vai continuar lá por vários séculos.

Maria: Só que o metano contribui muito mais para aquecer o planeta ao longo da sua curta existência – 84 vezes mais, para sermos rigorosos, isto se pensarmos num prazo de 20 anos.

Rui: Se o desperdício alimentar fosse um país, seria o terceiro com as emissões de gases com efeito de estufa mais altas no mundo, só ficaria atrás da China e dos Estados Unidos da América.

Maria: É sobretudo por isso que reduzir o desperdício alimentar é uma das formas mais rápidas e eficazes de travar as emissões e a subida da temperatura média do planeta.

Rui: Neste momento há uma proposta em cima da mesa da Comissão Europeia para impor níveis obrigatórios de redução deste desperdício.

Maria: Em 2016, França, por exemplo, proibiu os supermercados de deitar fora comida não vendida. Em Espanha discute-se agora a aplicação de multas para restaurantes e bares que ponham alimentos no lixo.

Rui: A União Europeia quer reduzir o desperdício alimentar para metade até 2030, mas está muito longe desse objectivo. Será preciso uma lei para lá chegar?

Susana Paiva: Num mundo ideal não há nada disto. Num mundo ideal, todos têm aquilo de que necessitam na exata medida daquilo de que necessitam – em tudo na vida.

Rui: Nesse mundo de Susana Paiva, coordenadora da REFOOD de Santa Maria Maior, não lhe entram pela porta pessoas como Margaret Brito.

André Scripilliti: Aqui couve-flor.

Margaret Brito: Não, não tenho onde cozinhar. Só tenho para aquecer. Eu já venho aqui quase há cinco anos. Eu vivi na França, em Paris, 30 anos. Vim para Portugal e a minha vida foi um descalabro. Virei sem-abrigo, dormi nas ruas. Quer dizer, agora não, graças a Deus, não. Já estou bem colocada, eu e o meu companheiro. Ora bem, eu sou uma mulher trans, automaticamente é super complicado. Para qualquer coisa, mas para nós é pior, entende?

Rui: Mas é a própria Susana a reconhecer a realidade.

Susana Paiva: Não estamos num mundo ideal. O que eu acho que pode acontecer é: pode haver uma maior consciencialização, é tentar de facto mais a montante também haver um certo… mais contenção, tentar racionalizar mais os meios, os produtos, digamos assim, a produção. Obrigada, tchau, queridos, tchau. E pronto, lá vou eu.

Rui: Ficamos a pensar nesta ideia de contenção, de suficiência. Em como é essencial resolver o problema não no fim da linha, mas no início.

Maria: Pensamos nisso enquanto acompanhamos Susana e mais três voluntários a pé, no caminho até uma pastelaria no centro de Lisboa.

Rui: Vêm aqui quatro vezes por semana, por isso já sabem mais ou menos o que os espera. Estão preparados com caixas, sacos e dois carrinhos. Depressa fica claro que mesmo assim não têm recipientes que cheguem para tudo.

Voluntária: E aqui quase que não consigo meter mais nada.

Susana Paiva: Isto também é para ir?

Funcionário: É tudo, minha senhora.

Rui: O balcão está cheio. Há tabuleiros e tabuleiros com todo o tipo de bolos, desde os mais tradicionais a vários exemplos de pastelaria mais fina. Também há croissants, sandes, bolachas, tartes, saladas, empadas, fruta. Ao lado, estão caixas com dezenas de pães.

Susana Paiva: Vocês não têm… é que não estávamos à espera que fosse tanto, não tem um plástico, por exemplo?

Rui: Susana pede ajuda aos funcionários desta pastelaria.

Susana Paiva: Arranja-me outro saquinho assim para ter a certeza que isto não rasga? Que este já não cabe nos sacos, temos de o levar assim. Obrigada. Um chega, chega! Segura aqui, ajuda aqui.

Rui: Num mundo ideal, uma pastelaria não teria a montra cheia ao fim do dia como se tivesse acabado de abrir.

Susana Paiva: Está tudo?

Voluntária: Penso que sim.

Susana Paiva: Ok. Muito obrigada, até amanhã.

Rui: Num mundo ideal, a REFOOD não teria necessidade de existir.

Susana Paiva: As coisas avançam e o mundo torna-se melhor com coisas concretas, acções concretas do dia-a-dia e, às vezes, pequenas acções. Mas eu acho que vai sempre haver excesso. Aliás, um dos problemas é exactamente o excesso do excesso.

Rui: O excesso ultrapassa um limite. Ignora que ele existe. E esse é um dos problemas do sistema alimentar global que nos alimenta.

Maria: Para alimentar o mundo de forma sustentável, é fundamental produzir comida com os recursos naturais que existem, sem esgotá-los.

Rui: Mas parece que nos recusamos a aceitar esses limites.

Monica Truninger: Isto parece agora uma ideia um bocadinho tonta e maluca, mas há muita gente já a pensar em alimentação fora do planeta Terra. Que é a tal que tal orientação tecnocrata de que tecnologia resolve tudo, não é? Aquele pensamento típico de que, não, nós com uma solução tecnológica vamos aqui resolver logo três ou quatro ou cinco problemas de uma vez. É uma questão de não encarar os limites como limites. Há sempre qualquer coisa e isso é altamente pernicioso, porque agora já não é o planeta Terra. Agora já é outros sítios fora da Terra que também vamos espatifar por aí.

Rui: Se toda a gente consumisse como um português precisaríamos de quase três planetas. E é a nossa alimentação que mais contribui para essa pegada – mais do que os transportes ou o consumo de energia.

Monica Truninger: Isto é que é difícil na alimentação. É que não há propriamente uma uma solução mágica que resolve a equação da inclusão social, a equação da sustentabilidade ambiental e a equação da saúde. Tem que se fazer compromissos.

Rui: Como é que comemos sem consumir o planeta?

Maria: Ouvimos muitas vezes dizer que devemos ter uma alimentação equilibrada. Equilibrada em quê? E para quem?

Rui: Por trás dessa alimentação equilibrada tem de estar a justiça ambiental e social.

Maria: Quando olhamos para o nosso prato, temos de ver muito mais do que calorias e nutrientes. Temos de ver um puzzle com muitas peças.

Rui: E quanto mais eu e a Maria andamos à procura de uma solução mais percebemos que falta uma peça. Essa peça és tu.

Maria: És consumidor, e cada compra que fazes é um voto. Mas és muito mais do que isso.

Rui: És cidadão. E é nesse papel que podes fazer a diferença.

 


 

Créditos

 

Rui: Este episódio foi produzido, escrito e editado por mim Rui Catalão, pela Maria Antunes e pela Vera Moutinho.
O podcast Próprio para Consumo é uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática. Esta primeira temporada tem 4 episódios e conta com o apoio da ANP|WWF. Este projecto vive para lá dos episódios do podcast. Nos sites e nas redes sociais do Público e dos Kitchen Dates há mais para ler e ver sobre os temas de cada episódio. Até à próxima.

Os episódios

1. Que pão andamos a comer?

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2. Como é que chegámos até aqui?

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3. O que é que o meu pão tem a ver com alterações climáticas?

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4. O bom pão quando nasce é para todos?

Apoio

A produção do podcast “Próprio para Consumo” conta com o apoio da ANP|WWF, no âmbito do Eat4Change, uma iniciativa internacional para promover a transição para dietas sustentáveis. O E4C é cofinanciado pelo Programa de Educação e Sensibilização para o Desenvolvimento (DEAR) da Comissão Europeia.

Parceiros

O “Próprio para Consumo” faz parte da rede de podcasts independentes do PÚBLICO e é produzido em parceria com o Azul, a secção do jornal dedicada ao ambiente e à crise climática.