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1. Que pão andamos a comer?

É protagonista do nosso dia-a-dia e as variedades multiplicam-se, mas hoje sabemos muito pouco sobre ele. Tal como muitos outros alimentos, traz quase sempre um rasto invisível de impactos – nas pessoas, na economia e no ambiente. Vem conhecer por dentro o pão nosso de cada dia, do mais artesanal à produção em larga escala. Porque o rótulo só conta uma pequena parte da história.

Transcrição do episódio

Rui: Pão. Farinha, água e sal. Um alimento ancestral, protagonista na história de civilizações, religiões e conflitos. E também do nosso dia-a-dia.

(”Pão Pão, Fiambre Fiambre”, Tino de Rans)

Rui: Um símbolo que tanto é demonizado como endeusado e que hoje tem como aliados aqueles que fazem sua missão resgatar o verdadeiro pão. O pão que faziam os nossos avós.

João Vieira: “Mas o pão da avó já não tem o trigo do avô. E esse é o problema”

Paulo Martins: “Não, não, não sei onde é que a avó está, mas não é da avó, de certeza”

Rui: O que é um bom pão, na verdade? E o que é que o meu pão tem a ver com alterações climáticas? Eu sou o Rui Catalão.

Maria: E eu sou a Maria Antunes.

Rui: Este é o primeiro episódio do podcast Próprio para Consumo. Uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal PÚBLICO dedicada ao ambiente e à crise climática. Se olhares para a comida que tens no prato podes ver muita coisa. Mas talvez não vejas isto: andamos a comer à custa do planeta. O sistema alimentar está em crise e é mais do que uma vítima das alterações climáticas; também contribui para as tornar mais perigosas. O planeta está a aquecer…

António Guterres: “We are on a highway to climate hell, with our foot still on the accelerator”

Rui: O aviso, mais um, é de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas. A alimentação tem o poder para travar ou acelerar esse aquecimento. Vamos continuar a comer em direcção ao inferno climático ou vamos sair finalmente da autoestrada? Neste primeiro episódio vamos levar-te a uma pequena padaria e a uma grande fábrica para tentar responder a esta pergunta: que pão andamos a comer? Mas antes disso vamos ao supermercado.

(a caminho do supermercado)

Rui: Maria, lembras-te quando vivíamos na Holanda e um dia fomos ao supermercado comprar pão, e pela primeira vez olhámos para o rotulo e reparámos nos ingredientes?

Maria: Eram mais de dez e um deles açúcar.

Rui: Foi aí que começou a nossa mudança. Passámos a olhar para os alimentos de outra forma, a questionar aquilo que comemos e o impacto ambiental das nossas escolhas. A partir daí dedicámos milhares de horas à procura de soluções e outras tantas a fazer pão. Pelas minhas contas já devo ter feito mais de três toneladas de pão.

Maria: E não foi só o pão. Investigámos a fundo cada alimento que pomos no nosso prato. E queríamos partilhar tudo o que fomos descobrindo com mais pessoas. Ao ponto de em 2019 termos aberto um restaurante, o primeiro em Portugal sem caixote do lixo e só com ingredientes locais e biológicos

Rui: Entretanto veio a pandemia, fechámos o restaurante, (Alice: “olá, papá”) chegou a Alice, mas continuamos a acreditar que a informação é poder. Fazemos palestras, damos workshops e trabalhamos com muitas organizações para criar hábitos alimentares mais saudáveis e sustentáveis.

Estamos finalmente à porta de um supermercado de Lisboa. Queremos conhecer melhor o pão que se vende aqui.

[no supermercado]

Bom dia, onde é que posso ver a lista de ingredientes deste pão?

Funcionário: Se não disser na etiqueta tenho de mandar chamar uma colega minha. Não lhe sei dizer de cor.

Rui: Ai é?

Funcionário: Tenho de ir chamar. Dê-me só um segundo.

[em estúdio]

Rui: Optámos por gravar esta conversa sem nos identificarmos. Queríamos ter uma experiência o mais parecida possível com a de qualquer pessoa que aqui venha.

Maria: Quando vens a um supermercado ou hipermercado já reparaste que quase todos têm padaria? Às vezes é só uma montra com vários tipos de pão.

Rui: Lá atrás, és capaz de ver uns carrinhos com tabuleiros, eventualmente um forno ou outro. Todos os pães têm nome mas a lista de ingredientes nem sempre está lá. O mesmo acontece numa pequena mercearia, num café ou numa pastelaria. Não é obrigatório que a lista de ingredientes esteja à vista. E sem ela não sabemos o que está dentro do pão.

[no supermercado]

Funcionária: Bom dia. Diga: é o senhor que quer saber os ingredientes do pão?

Rui: Sim, queria perceber… como não tem a lista de ingredientes à vista.

Funcionária: A única coisa que eu lhe consigo passar informação é os ingredientes que aqui tem. Não consigo mais do que isto.

[em estúdio]

Maria: Aquilo que a funcionária nos está a mostrar é a placa junto ao pão onde está o nome, o preço e as substâncias que podem causar alergias, como ovo, leite e amendoim. Isto ainda não é a lista de ingredientes.

[no supermercado]

Rui: Imagine, eu quero escolher o pão que mais me interessa, também pela lista de ingredientes.

Maria: Como é que conseguimos esta lista?

Funcionária: Esta lista só eu indo a uma balança tirar.

Rui: Então e consegue tirar-nos pelo menos… pareceu-me bem este aqui e este aqui. Consegue tirar-nos?

Funcionária: Pão de mistura e de oito cereais?

Rui: Consegue tirar-me essa listinha, pode ser?

Funcionária: Posso.

[em estúdio]

Rui: Visitámos vários supermercados. Em alguns, a lista estava junto ao nome; noutros numa placa afixada na parede; e em casos como o deste supermercado tivemos de pedir a um funcionário que nos imprimisse uma etiqueta para conseguirmos finalmente ter acesso a essa lista. Vamos lá olhar para o rótulo deste pão de mistura. Na essência, o pão só precisa de três ingredientes: farinha, água e sal.

Maria: Posso começar? Este pão tem um preparado com farinhas de CENTEIO e de TRIGO, GLÚTEN de TRIGO, farinha de MALTE tostada, massa madre desidratada, estabilizador: goma de guar, regulador de acidez: carbonato de cálcio, emulsionante: ésteres mono acetil tartáricos e diacetil tartáricos de mono e diglicéridos de ácidos gordos, especiarias, agente de tratamento da farinha: ácido ascórbico, enzimas (GLUTEN)), levedura, farinha de TRIGO (farinha de TRIGO, antioxidante: ácido ascórbico, enzimas), farinha de CENTEIO, farinha de TRIGO integral, farinha de TRIGO (farinha de TRIGO, antioxidante: ácido ascórbico, enzimas), sal, farinha de arroz.

Rui: A lista de ingredientes tem vindo a crescer. Melhorantes, estabilizadores, agentes de tratamento de farinha, reguladores de acidez, conservantes. Isso melhora, de facto, o pão?

Maria: E por que é que ele tem de ser melhorado?

Rui: Nas prateleiras dos supermercados queremos encontrar o pão das nossas avós, um pão mais simples, mais puro, mais genuíno. Mas é esse que lá está?

Paulo Martins: Não, não, não sei onde é que a avó está, mas não é da avó, de certeza, não é? Há qualquer coisa aqui que não está bem.

Rui: Para mudar isso, Paulo Martins abriu em 2018 a Massa Mãe, uma pequena padaria artesanal em Lisboa.

Paulo: A verdade é que existem muitas falsidades que permitem vender muito pão e isso é uma ironia de toda a indústria alimentar.

Rui: Susete e Catarina são duas clientes da Massa Mãe. Susete procurava uma alternativa ao supermercado.

Susete: O pão muito barato do supermercado cheira muito bem e é muito agradável no momento, passado quatro ou cinco horas parece borracha. Fica quase intragável.

Rui: Catarina encontrou aqui algo único.

Catarina: Sinto-me bem, é um pão com o qual me identifico. Não sei, gosto bastante, já provei várias padarias, mas esta é especial.

Paulo: Isso aconteceu muitas vezes aqui. Pessoas quase a chorar, a dizer que não comiam pão há muitos anos e que parecia o pão da avó e coisas do género. E eu queria de alguma maneira devolver isso às pessoas. A possibilidade de provarem um pão, um pão de qualidade que lhes trouxesse memórias. Essa coisa das memórias parece quase coisa de chef de cozinha, mas a verdade é essa.

Rui: As memórias do Paulo começam nas mãos do pai.

Paulo: Pão alentejano, muito ácido, e de ver o meu pai sentado no sofá a chegar ao fim de um dia de trabalho e cortar o pão com as duas mãos com um canivete e sentir que havia ali qualquer coisa muito especial que eu nunca consegui sequer explicar completamente. E, já agora, é por causa disso que eu sou padeiro , eu quero ter isso de volta. Eu neste momento tenho 48 anos, eu quero ser padeiro desde os 6.

Rui: Um sonho que só concretizou 30 anos mais tarde. Pelo caminho, em Londres, estudou Filosofia e trabalhou como cozinheiro em restaurantes conceituados. Num deles tinha de fazer pão todos os dias. E isso levou-o de volta à infância, à cozinha dos pais.

Paulo: Achava ali qualquer coisa fantástica naquilo e no facto de tão poucos ingredientes poderem sofrer uma alteração tão grande por obra e graça não sabia muito bem de quem. Achava muito apetecível ter esse controlo sobre essa espécie de magia, uma espécie de magia negra.

Rui: Estamos numa pequena padaria que é uma espécie de T0. Não há divisões, mas cada objecto, encaixado milimetricamente, cumpre uma função. Balcão, montra, câmara frigorífica, amassadeira, forno, e ainda cabe uma mesa de escritório. Se isto fosse um jogo de tetris, Paulo Martins estava a ganhar.

Maria: Aqui fazem-se uns 200 pães por dia e chegam a ter 15 variedades.

Rui: A contar com Paulo, nesta padaria trabalham cinco pessoas. E o negócio está a crescer: em breve esperam mudar para um espaço maior.

Paulo: Acho que o nosso pão é diferente porque tentamos trabalhar o máximo possível com ingredientes de qualidade e sobretudo, porque tem um longo processo de fermentação.

Rui: A maioria destes pães está praticamente um dia inteiro a levedar, quase 24 horas a crescer. E isso acontece graças ao trabalho de um fermento natural que talvez conheças por um destes nomes.

Maria: Isco, crescente, levain, massa madre, massa velha, massa azeda.

Rui: Ou aquele que se tornou mais popular… massa mãe.

Paulo: Sim, havia uma série de nomes diferentes, regionalismos, provavelmente, que as pessoas davam à massa mãe. Provavelmente massa mãe nem seria o mais comum. Mas eu gosto da palavra mãe porque é engraçado, tem o seu… a sua carga emocional.

Rui: Criar uma massa mãe tem quase tanto de magia como de química. É uma mistura de farinha e água, que é deixada a fermentar. Parece simples, mas dentro dela vive um conjunto de leveduras e bactérias que têm uma missão: transformar o açúcar que já existe na massa em dióxido de carbono e ácido láctico. São estas leveduras e bactérias que fazem o pão crescer e lhe dão um sabor mais ácido.

Maria: A isto chama-se pão de fermentação natural.

Rui: Ou fermentação lenta.

Paulo: Para além de dar um um pão com uma conservação muito, muito superior a um pão normal, é muito mais fácil de digerir. Há pessoas que têm sérios problemas. Provavelmente muitas delas pensarão que têm um problema com o glúten. Eventualmente não terão. É só um problema que têm com algum género de pão, ou melhor, com a maior parte do pão que é produzido hoje em dia. E o facto de nós utilizarmos estas fermentações muito longas no frio faz com que seja muito, muito fácil e facilmente digerível pelo organismo. Um pão que é produzido com massa mãe e mantido durante quase um dia a fermentar. E essa é a grande diferença de um pão convencional que fermenta possivelmente durante duas horas, porque tudo é feito para acelerar este processo.

Rui: O sistema alimentar de hoje vive a uma velocidade que não é compatível com os limites do planeta. Imagina que enquanto nos estás a ouvir o mundo inteiro parava de queimar combustíveis fósseis mas continuava a comer da mesma maneira. Mesmo assim, o planeta ia continuar a aquecer. Isto porque o sistema alimentar é responsável por 1/4 das emissões de gases com efeito de estufa. É mais do que todo o sector dos transportes, incluindo os aviões.

Maria: E apesar disso continuamos a não olhar para o impacto dos alimentos que estão no nosso prato.

Rui: É urgente comer menos alimentos com uma grande pegada de carbono, como a carne e os lacticínios. Em vez disso, precisamos de incluir mais vegetais e mais leguminosas. Mas mudar os nossos hábitos nem sempre é uma tarefa fácil.

[num café: “Sai uma torrada com manteiga”]

Rui: Um bom exemplo disso é o nosso pequeno almoço. Pensa na torrada com manteiga ou numa sandes de queijo e fiambre.

Maria: Aquilo que pomos no pão também importa. Mas ainda queremos falar-te mais sobre pão porque isso pode ajudar-nos a perceber a ligação entre a crise do sistema alimentar e a crise climática.

Rui: Até agora só falámos do lado artesanal, numa escala mais pequena.

Maria: Mas este não é o pão que a maioria das pessoas come.

Rui: Fomos à procura desse pão. E isso trouxe-nos a Vila Nova de Poiares, perto de Coimbra.

Marta Gonçalves: Nós estamos a produzir uma referência. Produzimos cerca de 700 quilos de pão por hora.

Rui: Estamos com Marta Gonçalves, directora de produção da Nutriva. Para entrar nesta fábrica, eu e a Maria temos de nos equipar a rigor com batas, toucas na cabeça e pezinhos de plástico. Viemos conhecer esta empresa de produtos alimentares ultra congelados com grandes clientes em Portugal e lá fora.

António Monteiro: Os países para onde mais vendemos são Espanha, França e Inglaterra, e depois temos os outros países da Europa Central, os Estados Unidos, e também Canadá e China.

Rui: Foi António Monteiro quem criou a Nutriva em 2005 com apenas 15 trabalhadores. Hoje tem 200. No dia desta visita, em Fevereiro, António fala-nos das dificuldades causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia.

António: Desde a matéria prima, às energias, aos combustíveis. Quer dizer, nada falta para nos penalizar. De facto, o que está em causa é o agravamento dos preços. Nós estávamos a comprar farinha abaixo de 400 euros a tonelada e agora compramos perto 600, acima de 500. Isto foi agravado, fruto desta instabilidade dos mercados.

Rui: Precisamos de deixar aqui uma nota. Pouco antes de publicarmos este episódio, uma notícia revelou que a Nutriva tem uma dívida que ronda os 30 milhões de euros.

Maria: Independentemente do desfecho desta história, o que nos traz aqui é o processo de fabrico industrial de pão.

Rui: E esse é em tudo semelhante a qualquer grande fábrica do sector em Portugal.

[na fábrica]

Rui: Daqui saem sobremesas, pastelaria, gelados, salgados, refeições prontas e pão.

Maria: Muito pão. Tudo ultracongelado.

Marta: A Nutriva não tem qualquer produto que não seja ultra congelado. No caso do pão, ele sai 90% cozido e a terminar muitas vezes no ponto de venda.

Rui: Isto traz duas vantagens para quem vende: pode ir finalizando a cozedura consoante a procura e tem pão para oferecer, quentinho, quase como se fosse de fabrico próprio.

Marta: E o nosso pão tem qualidade para poder ser mostrado dessa forma.

Rui: Nos supermercados e hipermercados somos atraídos pelo cheiro, pela abundância, pelo pão acabado de fazer e pela garantia da conveniência. Por um lado, o pão ultracongelado até pode ser uma forma de combater o desperdício.

Maria: Por outro, é tão rápido pôr mais pão no forno que há a tentação de encher as prateleiras constantemente.
O que no limite pode gerar um efeito perverso: no final do dia, estaremos a gerar ainda mais desperdício?

Rui: Este pão não chega só às grandes superfícies. Está também em hotéis, restaurantes, cafés e até em algumas padarias tradicionais que compram pelo menos uma parte da sua produção a empresas como a Nutriva.

Maria: E na verdade isso foi algo que nos surpreendeu.

Rui: Sim, as padarias tradicionais querem ter mais tipos de pão à venda, mas por outro lado têm problemas com mão de obra.

Marta: E a falta dela obriga muitas vezes estes pequenos produtores a produzir uma ou duas referências e depois a fazer com que o produto produzido por nós. Por isso, nós não estamos apenas na grande distribuição e grande parte do nosso pão está exatamente em padarias tradicionais que produz a carcaça, o pão de bico, mas depois precisa de um pão de cereais e um pão de cereais já vem de uma Nutriva ou de outra fábrica como nós.

Rui: É Marta quem nos guia pela fábrica.

Marta: E agora vamos ver o pão.

Rui: Numa sala ampla onde as máquinas fazem quase tudo estão seis pessoas a trabalhar. Há duas amassadeiras que podem levar até 300 kg de massa e lá fora estão dois silos, cada um com 25 toneladas de farinha de trigo pronta a ser usada.

Maria: Ao lado das amassadeiras, a massa descansa – ou seja, cresce – em grandes caixas de plástico. Lá dentro caberia pelo menos um de nós. Mas a massa fica pouco tempo aqui. São 45 minutos até hora e meia a fermentar.

Rui: Hoje, na linha de produção está um cacetinho, fabricado em exclusivo para uma grande cadeia de hipermercados.

Maria: A massa é transferida para uma máquina que a partir daqui fará grande parte do trabalho: enfarinha e divide-a em oito filas.

Rui: Imagina uma autoestrada em hora de ponta, e com oito faixas.

Maria: Isso. Lentamente, essa massa caminha para uma guilhotina que a corta em rectângulos com 140 gramas. À primeira vista parecem todos iguais e esse é o objectivo. Mas alguns não são.

Marta: A colega esta a fazer o controlo de peso. Se estiver fora daquilo que é a nossa baliza, retira, faz ajustes de maquina. Toda a massa aqui é reaproveitável ainda.

Rui: No fim da autoestrada, o pão vai fermentar por cerca de 1 hora, já em tabuleiros, antes de ser cozido.
Através de uma janela, vemos um robô.

Marta: Isto é um carregador. O colega está a pôr os dois carros de pão. Este carregador vem aqui aos tabuleiros, vai apanhar o pão todo e vai introduzi-lo dentro dos fornos. E esses fornos de que eu falava são em lar de pedra, com oito pisos, cozem uniformemente em simultâneo com um tempo definido que no caso são 15 minutos.

Rui: Terminada a cozedura, o robô descarrega os cacetinhos num tapete rolante que os leva até uma espiral com nove andares, talvez uns quatro metros de altura. O pão sobe lentamente, arrefece de forma natural até ir para um túnel de congelação. Ao todo, da mistura inicial até estar pronto a embalar, o processo leva quatro horas.

Maria: A julgar pela cor, estes cacetinhos até já parecem prontos a comer. É um pedido deste cliente em específico, uma grande cadeia de super e hipermercados.

Rui: O objectivo é ter pão quente na prateleira o mais rápido possível.

Marta: A ultra congelação permite nos claramente trabalhar um produto sem necessidade de conservantes, porque a congelação por si só já nos permite estender a vida útil do produto. Pode ir até um ano em perfeitas condições e um ano depois ele é regenerado. Descongela, vai a cozer, e está perfeito a consumir, com as características iniciais.

Rui: A procura hoje é por um pão com menos ingredientes. Mais próximo daquilo que falávamos no início. Lembras-te? Farinha, água e sal.

António: Rótulos limpos. Cada vez mais as pessoas querem menos E’s, menos aditivos, menos corantes, menos conservantes.

Rui: A indústria está a ver uma oportunidade e quer ocupar esse espaço no mercado.

Maria: Mas, sem as fermentações longas da massa mãe, usar menos conservantes acaba por ter consequências.

Rui: António Monteiro, CEO da Nutriva, é o primeiro a reconhecer isso: este pão não dura assim tanto tempo.

António: É evidente que não, mas é muito mais saudável. E é isso que querem cada vez mais os players, o consumidor, nós próprios queremos os rótulos mais limpos, o mais clean possível.

Rui: Na prática, não é assim tão simples. Quando olhámos para o rótulo do cacetinho que vimos ser produzido, encontrámos pelo menos dois aditivos.

Maria: O E170, que diz que a este pão foi adicionado carbonato de cálcio, para a massa ficar menos pegajosa e mais fácil de trabalhar. O outro aditivo é o E300, ou seja, ácido ascórbico, que serve, entre outras coisas, para dar mais volume ao pão.

Rui: Tudo isto ajuda a comprar tempo, para substituir o trabalho naturalmente feito pelas leveduras e bactérias da massa mãe. São aditivos usados para optimizar a produção.
Para fabricar mais pão, em menos tempo, uniforme e mais barato.
Para todos os efeitos, um pão produzido assim é… prepara-te… um alimento ultraprocessado.

Maria: E não somos nós que o dizemos. É a FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, com base num sistema de classificação chamado NOVA.

Rui: Fomos analisar este sistema. Está dividido em quatro grupos.

Maria: No último, o dos alimentos ultraprocessados, estão produtos como sopas instantâneas, refrigerantes, salsichas, iogurtes com aromas e pizzas congeladas. O que têm em comum todos estes produtos? Tal como o cacetinho, têm ingredientes que não existem nas nossas cozinhas.

Rui: Nas prateleiras dos supermercados, temos cada vez mais por onde escolher. E até já vemos a aparecer pão com massa mãe, como aquele que comprámos no início deste episódio.

Paulo: É absolutamente verdade que é um pão com massa mãe, mas eu acho que a massa mãe está lá para dar o nome ao pão, para que eles possam cobrar o preço que querem.

Rui: Lembras-te do Paulo Martins, padeiro artesanal em Lisboa? Ele fala-nos da massa mãe como um chamariz:

Paulo: E todas as coisas que não deviam estar no pão com massa mãe continuam lá, mas eu creio que eles continuam a fazer isso porque continua a haver pessoas que não olham para um rótulo.

Rui: E também não é no rótulo que encontramos, por exemplo, informação sobre as condições de trabalho de quem fez o nosso pão. Se recebeu o ordenado mínimo ou trabalhou longas horas durante a noite.

Maria: Saber avaliar o que está no nosso pão e a forma como foi produzido ajuda-nos a tomar decisões mais conscientes. Vamos pela saúde? Privilegiamos o sabor? Ou é o preço que decide?

Rui: Um bom pão tem de forçosamente ser um pão com um preço mais alto?

Paulo: A resposta curta é sim.

Rui: A resposta longa é muito mais complexa.

Paulo: E esse é o meu grande dilema aqui dentro, em que tenho que gerir e tomar decisões. E até tenho algum sentimento de culpa por estar a fazer uma coisa que nunca deveria ser elitista, mas acidentalmente acaba quase por sê-lo, porque é impossível ser de outra maneira. Mas a verdade é que eu acho que o que está errado é a maneira com que nós temos andado a fazer pão durante sobretudo os últimos 50 anos. E o que está errado também é nós passarmos a ideia de que se pode fazer alimentos baratos. Não se pode.

Rui: Então para ser acessível estamos condenados a comer mau pão?

Paulo: Não quer dizer que um pão caro tenha que ser bom, não é? São coisas diferentes, portanto, mas um pão de qualidade não pode ser barato. É impossível ser barato. Eu diria que um bom pão é um pão que pensa em tudo.

Rui: O sistema alimentar devia pensar em tudo? Um bom pão tem de nos alimentar e fazer bem ao nosso corpo. Não pode esquecer o impacto na nossa saúde. Um bom pão tem de pagar um salário justo a quem o faz. Na padaria de Paulo Martins, cada padeiro recebe mais de mil e cem euros por mês. Na indústria, a norma é o ordenado mínimo. Um bom pão tem de respeitar o ambiente e contribuir para um sistema alimentar sustentável.

Maria: No rótulo do pão que comemos nada disto é claro. E, independentemente de como o pão é produzido, há algo que vem muito antes e de que raramente se fala: os cereais.

Rui: E nisso o pão da indústria e o pão artesanal talvez estejam no mesmo barco: Portugal só produz cerca de 6% do trigo que consumimos. Tudo o resto é importado. Quando comemos o nosso pão de manhã, não sabemos que trigo é nem de onde vem. O trigo é o terceiro alimento mais consumido no mundo. Mais do que isso, simboliza um sistema alimentar global e altamente industrializado. Um sistema fundado numa ideia simples: retirar e dar pouco ou nada de volta.

Maria: E é por isso, hoje, também, um sistema em crise. Vulnerável, ferido, pouco resiliente.

Rui: Frágil perante as ondas de choque de pandemias, colapsos financeiros, guerras e do impacto já sentido de secas, incêndios, cheias, ondas de calor…

Maria: Olhámos para o trigo para perceber como é que chegámos até aqui.

Rui: É essa história que queremos contar-te a seguir.

João Vieira: O pão é de certa modo alquimia. Com sementinhas ou sem sementinhas… mas na verdade o conteúdo não está debatido. Que trigo é que deu origem àquilo?”

 

 


 

Créditos

 

Rui: Este episódio foi produzido, escrito e editado por mim Rui Catalão, pela Maria Antunes e pela Vera Moutinho.
O podcast Próprio para Consumo é uma produção Kitchen Dates em parceria com o Azul, a secção do jornal Público dedicada ao ambiente e à crise climática. Esta primeira temporada tem 4 episódios e conta com o apoio da ANP|WWF. Este projecto vive para lá dos episódios do podcast. Nos sites e nas redes sociais do Público e dos Kitchen Dates há mais para ler e ver sobre os temas de cada episódio. Até à próxima.

Os episódios

1. Que pão andamos a comer?

2. Como é que chegámos até aqui?

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3. O que é que o meu pão tem a ver com alterações climáticas?

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4. O bom pão quando nasce é para todos?

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Apoio

A produção do podcast “Próprio para Consumo” conta com o apoio da ANP|WWF, no âmbito do Eat4Change, uma iniciativa internacional para promover a transição para dietas sustentáveis. O E4C é cofinanciado pelo Programa de Educação e Sensibilização para o Desenvolvimento (DEAR) da Comissão Europeia.

Parceiros

O “Próprio para Consumo” faz parte da rede de podcasts independentes do PÚBLICO e é produzido em parceria com o Azul, a secção do jornal dedicada ao ambiente e à crise climática.