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Um fim que não é o fim

Por 9 de Fevereiro de 2021Maio 22nd, 2022Sem comentários

Hoje é um dia que nunca esperámos que chegasse tão cedo. Não temos mais como disfarçá-lo: atingimos um ponto de desgaste mental, emocional e físico sem retorno.

Já lá vão 11 meses de uma luta desigual contra uma pandemia que destruiu por completo a essência daquilo que tínhamos planeado para esta casa: juntar estranhos à volta de uma mesa para partilhar comida, ideias e experiências. Concebemos um espaço assente na literacia alimentar, com eventos de vários formatos que nos permitissem concretizar a missão de fazer deste mundo um lugar mais consciente, saudável e sustentável.

Em Março, apenas quatro meses depois de abrirmos a porta, roubaram-nos tudo isso por tempo indeterminado. Mas não baixámos os braços. Numa primeira fase, abraçámos o takeaway e as entregas ao domicílio como forma de manter uma ligação próxima com a nossa comunidade. Enquanto assistíamos a comportamentos de risco dos estafetas ao serviço das plataformas mais populares, fomos mais longe e assumimos nós próprios a responsabilidade de entregar cada encomenda, uma a uma, para proteger ao máximo cada pessoa.

Ainda hoje, no segundo confinamento, funcionamos assim. Já foram mais de 500 entregas em mão, desde vizinhos nossos de Telheiras a casas mais distantes – nas linhas de Cascais e Sintra ou em Almada e Corroios, só para dar alguns exemplos. Pelo meio criámos conceitos diferentes para manter essa proximidade (ainda que virtual) numa altura em que a distância física imperava. Foi o caso dos workshops online e dos Jantares Recolher Obrigatório, quando os restaurantes foram forçados a fechar às 13h ao fim-de-semana.

Reinventámo-nos vezes a fio em resposta às novas medidas impostas pelo governo. Trabalhámos 14 a 16 horas diariamente, ao longo de muitas semanas sem qualquer folga. Quando a pandemia rebentou em Portugal estávamos à procura de duas pessoas para a nossa equipa, mas a partir de Março vimo-nos forçados a cancelar esses planos e enfrentar a pandemia a dois.

Não tivemos direito a um único apoio do Estado. Como a empresa já existia antes de abrirmos o restaurante, fomos excluídos logo à partida da maioria das medidas anunciadas – ora porque no período homólogo de 2019 não estávamos a facturar (foi na fase em que preparávamos a abertura), ora porque originalmente a actividade principal da empresa era consultoria e não a restauração. Também não somos abrangidos pelos apoios lançados pela Câmara Municipal de Lisboa, pois ainda que o restaurante esteja neste concelho a sede da empresa sempre esteve no concelho de Sintra.

Mesmo com toda a turbulência que encontrámos, fizemos o nosso melhor para promover sustentabilidade, saúde e uma alimentação de qualidade junto de todos com quem nos cruzámos. Mesmo sem transparecer, isso aconteceu muitas vezes às custas da nossa alimentação, da nossa saúde física e mental e da nossa própria sustentabilidade pessoal e enquanto casal. Saltámos muitas refeições, hipotecámos horas de sono e sacrificámos o pouco que restava do nosso tempo livre para manter de pé esta casa em Telheiras.

Com orgulho, podemos dizer que desde a abertura nunca deixámos uma única conta por pagar. Temos sido financeiramente sustentáveis desde o primeiro dia – coisa rara num negócio destes, muito menos com uma pandemia pelo meio. Ainda antes da abertura angariámos 12 mil euros com a pré-venda de produtos e serviços numa campanha de crowdfunding e estamos muito gratos àqueles que nos apoiaram dessa forma. Investimos muito mais do que isso: foram cerca de 60 mil euros, dinheiro que em grande parte não conseguiremos recuperar. Mas nunca fomos motivados pelo dinheiro, muito menos deixaríamos de tomar a decisão mais acertada pelo peso de um investimento.

A realidade é que este espaço já não nos serve. A localização era ideal para eventos à porta fechada, mas no contexto actual (e no que provavelmente virá a seguir) tem mais aspectos contra do que a favor. As dimensões estão desajustadas daquilo que nos deixam (e que conseguimos) fazer. A própria renda é um fardo que consideramos desproporcional em relação ao valor que daqui retiramos. Nunca quisemos ser apenas um restaurante – e no último ano fomos reduzidos a isso.

Por muito que custe aceitar, o cenário que todos temos no horizonte não é propriamente animador. Quando é que voltaremos a estar verdadeiramente confortáveis em partilhar a mesa com um estranho? Ou até com amigos?

Entregámo-nos em absoluto a esta casa. Provámos que é possível uma cozinha sem desperdício, 100% local, de relação directa com todos os produtores, que desafia as convenções de um sector da restauração e da produção alimentar demasiado agarrado ao descartável e à conveniência e que hoje em dia debita os chavões da sustentabilidade sem lutar verdadeiramente por ela. Demonstrámos que um modelo de economia circular traz inúmeras vantagens a um negócio, inclusive no saldo entre receitas e despesas. O mesmo se aplica em casa de cada um de nós, com pequenas grandes mudanças que fazem toda a diferença.

Ainda assim, é o momento de reconhecer que agora o melhor para nós é deixar esta casa para trás. A verdade é crua e dura: já não temos forças nem motivação para continuar a lutar.

Isto não significa o fim dos Kitchen Dates, mas sim uma mudança de direcção. Mantemos o compromisso de um projecto de literacia alimentar com os mesmos ideais. Muito provavelmente até estaremos mais activos na partilha de informação que possa ajudar-te a traçar o teu próprio caminho – seja pela sustentabilidade ou pela saúde, pelo consumo de produtos locais e vegetais ou pela defesa do biológico. Estamos igualmente empenhados em ajudar outras empresas e organizações a melhorar as suas práticas. Há um longo caminho a percorrer e queremos continuar a ser um motor da mudança.

Vamos manter este formato de takeaway e entregas até ao fim de Fevereiro. Em Março, por enquanto, só temos planos para organizar uma nova série de workshops online que lançaremos entretanto. Se tiveres vouchers nossos por utilizar, podes activá-los em qualquer compra ou inscrição em workshop através do nosso site. A partir de Março teremos ainda outros itens disponíveis para trocar pelos vouchers – como é o caso da nossa loiça. A seu tempo também partilharemos mais informações sobre isso.

Esta é uma mensagem carregada de tristeza e de frustração, mas no meio de tanta angústia e de tantas feridas abertas queremos partilhar contigo uma novidade cheia de alegria: temos um bebé a caminho. E vamos agarrar-nos a ele com toda a força e esperança num futuro mais risonho.

Obrigado por nos acompanhares até aqui. Com ou sem restaurante, esperamos que sigas connosco nesta viagem.

Um abraço,
Maria & Rui